
Não faz muito tempo, a genealogia era matéria exclusiva de aficionados que gostavam de passar os dias tirando a poeira de arquivos e preenchendo tabelas de pedigree. Mas ao longo da última década, o avanço dos arquivos digitais e de exames mais baratos de DNA transformaram um hobby enfadonho em uma lucrativa indústria comercial.
As empresas de genealogia faturam alto com a curiosidade aparentemente ilimitada dos clientes em relação a suas origens. O site Ancestry.com convida na home page: "Junte-se a nós na jornada que fez com que você se tornasse quem é".
De que país vieram meus tataravós? Eles eram ricos? Aventureiros? Poderosos? Como chegaram até mim? As respostas a essas questões fazem mais que dizer se você pertence à Mayflower Society, ou se é descendente direto de Genghis Khan (algo que pode ser afirmado com tranquilidade por 16 por cento dos homens).
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Elas podem mudar vidas, especialmente no caso de pessoas adotadas ou descendentes de escravos. Mas o que recebe menos atenção é a forma como a genealogia é capaz de revelar segredos a respeito de todos nós de uma única vez: o surgimento de nossa espécie, a história política do mundo, as origens das estruturas sociais que comandam o dia-a-dia.
Conforme Christine Kenneally escreve em seu novo livro, o boom da genealogia nos dá uma "transparência histórica" que nunca existiu. "The Invisible History of the Human Race" (A história invisível da raça humana, em tradução livre) está cheio de histórias que confirmam este argumento, mas uma das mais intrigantes vem justamente da linhagem de Kenneally.
Ela nasceu na Austrália, e depois de pesquisar os registros genealógicos descobriu algo que a teria agradado muito na adolescência: um prisioneiro na família. Seu tataravô foi enviado aos 15 anos de idade de Dublin para a vasta colônia penal da ilha australiana de Van Diemen's Land.
Descobrir mais a respeito do passado obscuro de seu ancestral (ele havia roubado um lenço) não abalou sua personalidade. Mas isso a levou a alguns dos insights mais profundos sobre a forma como as comunidades guardam segredos.
À medida que o sistema prisional perdeu força em meados do século XIX, o povo de Van Diemen's Land mudou o nome da ilha para Tasmânia e parou de falar sobre suas raízes criminosas. Os jornais falavam discretamente sobre "regimes diferentes" ou uma "fase obscura"; a palavra "condenado" praticamente desapareceu.
Depois de poucas gerações, quase ninguém na Tasmânia sabia que praticamente todos os habitantes descendiam de condenados. Para Kenneally, os registros genealógicos revelaram a verdade.
O DNA também guarda inúmeros segredos sobre o passado. Afinal de contas, os maiores eventos da história - as migrações, guerras e pestes - influenciaram drasticamente a forma como as pessoas se conheciam e reproduziam. Com as tecnologias de hoje, exibir esse legado genético é incrivelmente fácil.
Por menos de 100 dólares, as três maiores empresas de genealogia - a 23andMe, a AncestryDNA e a Family Tree DNA - examinam a saliva dos clientes em busca de centenas de milhares de marcadores. Kenneally visitou a sede da Family Tree DNA em Houston e ficou impressionada com a simplicidade do lugar: um prédio de escritórios genérico, com um "laboratório de DNA" nos fundos, onde ficam um punhado de máquinas barulhentas e um freezer bem caro.
- Quando você tem as máquinas certas, você não precisa de muito espaço ou ferramentas estranhas para revelar os mistérios da raça humana, escreveu.
Essa última frase pode parecer exagerada, mas está certa. Esses marcadores de DNA dão pistas sobre a evolução de nossa espécie na África cerca de 200 mil anos atrás, bem como do pequeno grupo de pessoas que resolveu migrar há 60 mil anos.
No começo da diáspora, os Homo sapiens sapiens evidentemente tiveram um encontro com outra espécie, os Neanderthais, afinal, o registro molecular desses encontros ainda existe nas profundezas de nossas células. O DNA também ilumina eventos históricos mais recentes.
Os cromossomos Y de nativos americanos, que são carregados apenas pelos homens, costumam ter marcas europeias, por exemplo, ao passo que o DNA mitocondrial, transmitido apenas pelas mães, não - indicando talvez que os colonizadores matavam os homens e se relacionavam com as mulheres. A genealogia também faz muitas pessoas ficarem ressabiadas em função de sua relação com o racismo.
Kenneally se aprofunda no movimento eugenista e no Terceiro Reich, e realmente encontra muitas coisas feias: segregação, esterilização forçada, programas de procriação. Mas ela também revela como a supressão da genealogia pode ser ruim.
Durante a Revolução Cultural da China, por exemplo, a Guarda Vermelha costumava matar famílias inteiras que possuíam registros que indicassem que seus ancestrais eram ricos ou poderosos. E ao longo do último século, dezenas de crianças em orfanatos tiveram suas identidades negadas, incluindo muitas vezes seus próprios nomes.
A genealogia, como muitas outras tecnologias, é moralmente neutra; ela pode ser usada tanto para o bem, quanto para o mal. Embora os nazistas a tenham usado como justificativa para hierarquias raciais, os cientistas de hoje a utilizam como forma de descreditar de uma vez por todas a noção de raça.
Conforme Kenneally aponta, as categorias que costumamos utilizar para falar de raça - negros, brancos, asiáticos e hispânicos - são em grande parte culturais. As diferenças genéticas entre as populações não são tão exatas. Na verdade, se o genoma nos ensinou alguma coisa, é o fato de que o DNA influencia muito menos nossas vidas do que as culturas em que nascemos.
E aqui está o melhor argumento em favor da genealogia: ela revela a natureza e a criação, exibindo nossas histórias invisíveis, libertas de tudo o que conhecemos e em que acreditamos.
