
Observados com atenção e desconfiança, seis homens pisaram em solo uruguaio há uma semana e já começam a respirar ares de liberdade, construindo, entre goles de chimarrão e manifestações de deslumbramento, a vida no novo mundo após 12 anos de absoluta exclusão. Paralelamente, o governo do Uruguai desencadeia operação tão delicada quanto a de trazer ex-presos de Guantánamo: a de aquietar 58% da população que, segundo o instituto Cifra, rejeitam a concessão de refúgio a esses indivíduos.
Os sírios Jihab Diyab, 43 anos, Ahmed Adnan Ahjam, 37, Ali Hussain Shaabaan, 32, e Omar Mahmoud Faraj, 39, o tunisiano Abdul Bin Mohammed Abis Ourgy, 49, e o palestino Mohammed Tahanmatan, 35, chegaram com o estado de saúde melhor do que o esperado. Acompanhados de funcionários americanos e uruguaios, eles foram levados em três carros, sem alarde, ao Hospital Militar de Montevidéu. Ali se iniciou a operação do governo José Mujica, com a concordância do sucessor eleito, Tabaré Vázquez, da Frente Ampla, mesmo partido do atual presidente.
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O senador Luis Rosadilla, autor da sugestão de que o Uruguai recebesse os presos de Guantánamo, dá o tom de como o gesto é visto pela esquerdista Frente Ampla.
- Foi, talvez, a medida mais importante deste governo - diz, deixando em segundo plano, implicitamente, a redução da pobreza, a regulação estatal de plantio e comercialização da maconha e a legalização do aborto.
Confidente de Mujica, de quem foi companheiro de guerrilha e ministro da Defesa, Rosadilla admite haver "riscos" na medida, mas porque viver é sempre arriscado.
- Verificamos os antecedentes deles. Posso assegurar: não há riscos ou perigos que justifiquem a adoção de cuidados especiais de segurança - discorda o ministro do Interior, Eduardo Bonomi.
Embevecimento com a rambla e as uruguaias
Mais robustos que o esperado, os seis "guantanameros" não tiveram de ir para uma central de terapia intensiva. No domingo, descansaram. No dia seguinte, submeteram-se a exames psicológicos e avaliações médicas. Fizeram contato com suas famílias, repetiam que não querem decepcionar Mujica, quase que em coro. Diyab acertou que trará a mulher e três filhos. Os outros devem fazer o mesmo.
Durante dois meses, os seis vão viver e estudar juntos, sob proteção policial, em um sobrado amplo, com dois banheiros, três quartos, cozinha, jardim e sala de estar com ar-condicionado e TV, cedido pela central sindical PIT-CNT, que atende a um pedido do governo e pretende ajudá-los, por meio de cursos, a se capacitar profissionalmente. Na parede da sala, bandeiras do Uruguai dão o tom da gratidão. A alimentação, que obedecerá a normas islâmicas de preparo, também será custeada pela central. Ainda foi providenciado um Corão, um telefone celular para os seis, óculos de lente e de sol e o acesso a um canal de fala árabe na TV a cabo. O chimarrão foi adotado pelos sírios.
- O PIT-CNT vai ajudá-los por solidariedade. Outros países ajudaram uruguaios durante a ditadura militar - afirma Fernando Gambera, secretário-geral da central.
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Na tarde de quinta-feira, eles saíram a passear por quase uma hora por Montevidéu, com roupas novas, relógios nos pulsos e barbas aparadas. Já ostentando a condição de refugiados (o que lhes confere liberdade similar à dos uruguaios) e acompanhados de um representante do PIT-CNT, conheceram a Rambla e caminharam pela Avenida 18 de Julio, principal artéria da capital uruguaia. Um deles fala inglês. Palavras em espanhol já lhes foram ensinadas, e eles as anotam, disciplinadamente em um caderninho. Antecipam o curso do idioma, que será intensificado. No passeio, houve dificuldades de comunicação. Entre os temas de conversas, a beleza da paisagem de Montevidéu, em especial a da Rambla, e das uruguaias.
- Esperamos que tragam suas famílias, como fizeram nossos avós e pais. Temos a garantia dos Estados Unidos de que eles não têm nexo com o terrorismo islâmico. Vamos ajudá-los a conseguir emprego e se instalar - diz o ministro da Defesa, Eleuterio Fernández Huidobro.
O sírio Faraj, por exemplo, já foi mecânico e açougueiro. O governo procura ocupação para ele nessas atividades. "Desejo assegurar a todos os uruguaios, incluindo o governo, que traremos boa vontade e contribuições positivas ao país", diz ele em carta, assegurando já ser um torcedor da "Celeste" - a seleção uruguaia. A história de Faraj, segundo ele: emigrou da Síria ao Irã para evitar o serviço militar. Não se adaptou ao Irã e rumou para o Afeganistão, de onde fugiu para o Paquistão por temer ser morto na guerra de facções afegãs, em 2001. Acabou detido e levado a Guantánamo em 2002, após ficar seis meses trancafiado no Afeganistão.
Expectativa sobre novos destinos para os presos
Com a transferência de seis ex-presos de Guantánamo para o Uruguai, a penitenciária americana encravada em Cuba ainda mantém 136 prisioneiros. Desse total, 67 estão prontos para ser também transferidos, 59 estão sob análise e apenas 10 efetivamente respondem a acusações criminais formais.

A medida tomada pelo Uruguai é a primeira de um país sul-americano e a segunda de um latino-americano - El Salvador já havia acolhido, em 2012, dois detidos uigures (minoria chinesa muçulmana), que posteriormente abandonaram o país.
O secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza, festejou a transferência e pediu que outros países façam o mesmo. Contou que dezenas já entraram em contato e assegurou: nenhum é latino-americano. Ainda assim, surgiram informações de que Brasil, Chile e Colômbia seriam novos destinos, possibilidade negada pelo Itamaraty. "O Brasil não estuda a hipótese de aceitar detentos oriundos da prisão norte-americana de Guantánamo", afirmou, em nota, a assessoria do Ministério das Relações Exteriores.
Um elemento a mais surgido na mesma época, porém, torna mais urgente a necessidade de fechar Guantánamo, medida planejada pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, para 2017. O Comitê de Inteligência do Senado americano divulgou relatório sobre métodos de prisão e interrogatório usados pela CIA (agência de inteligência americana), após os atentados de 11 de setembro de 2001, muito especialmente em Guantánamo.
E a principal conclusão foi: os interrogatórios dos detidos pela CIA eram brutais e muito piores do que a agência descrevia aos políticos e a outras autoridades. Além disso, as condições de confinamento dos detentos da CIA eram mais duras do que se pensava. Essas técnicas de interrogatório não foram um meio eficaz de adquirir informações sensíveis ou conseguir a cooperação dos detentos, e presos em poder da CIA foram submetidos a técnicas coercitivas de interrogatório que não haviam sido aprovadas pelo Departamento de Justiça.
Essa situação provocou desconforto entre os políticos americanos, sejam eles democratas ou republicanos, e aumentou a percepção de urgência em relação à transferência dos presos. Uma das constatações do relatório elaborado pelo Senado é de que a imagem dos EUA resta comprometida perante a comunidade internacional.
Um funcionário do governo americano disse na quarta-feira que o país fechou todas as suas prisões no Afeganistão e já não tem mais detentos no país, depois de 13 anos da invasão que derrubou o regime talibã.