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Belfast, Irlanda do Norte - Mais de 16 anos depois que o tratado de paz Good Friday trouxe uma esperança real de que protestantes e católicos poderiam viver juntos em relativa harmonia, a Irlanda do Norte está sendo atingida por uma nova onda de violência.
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Dessa vez, ela não está sendo impulsionada pela divisão sectária, mas por uma animosidade para com uma população de imigrantes que não para de crescer - incluindo um novo desafio às lutas da Europa para resolver a combinação de intensa tensão econômica e rápidas mudanças demográficas.
- Esta é uma sociedade que sempre teve orgulho de ser muito simpática, mas está se tornando cada vez menos acolhedora, principalmente para alguns tipos de pessoas - diz Jayne Olorunda, 36 anos, cujo pai era nigeriano, e que, apesar de ter crescido na Irlanda do Norte, afirma que sua cor sempre a marcou como alguém de fora.
O problema, que só aumenta, parece ser em parte racial e em parte direcionado a imigrantes de todas as origens, em um momento em que as fronteiras abertas na União Europeia trouxeram mais migrantes legais em busca de trabalho para a Inglaterra e a Irlanda. Ao mesmo tempo, guerras e problemas econômicos empurraram ondas de migrantes para a Europa, legais e ilegais, vindos da Ásia, Oriente Médio e África. Os mais recentes imigrantes da Europa do Leste e partes da África contam histórias parecidas com as dos chineses, indianos e paquistaneses que vivem aqui há décadas.
Mohammed Khattack, paquistanês de 24 anos que chegou a Belfast no ano passado para estudar ciências humanas depois de três anos em Londres, recebeu seu primeiro aviso em uma noite de junho, quando uma garrafa de vinho vazia estraçalhou a janela da frente de sua casa alugada no norte de Belfast. Quando ele e o rapaz com quem divide a casa, que também é do Paquistão, começaram a limpeza na manhã seguinte, pequenos grupos de vizinhos se formaram. Mas eles não vieram ajudar - vieram para aprovar o que havia acontecido.
Então, um deles começou a atacar Khattack com golpes em meio a uma enxurrada de insultos racistas.
- Ele era grande e me abordou, aí eu chamei a polícia para avisar sobre a invasão, já que ele estava do lado de dentro da cerca. Mas ele me deu uma gravata e começou a me socar e a pular sobre as minhas pernas. Consegui entrar em casa, mas ele me seguiu pela porta até que entrei no banheiro e lá ele continuou a me bater - conta Khattack.
Khattack passou por tratamento para ferimentos severos e ficou meses usando muletas. Ele ainda manca ao caminhar.
A polícia prendeu um homem de 57 anos, que foi solto sob fiança. Os policiais disseram a Khattack que desde então o homem sumiu da região.
Os números oficiais e os indícios casuais mostram que a severidade e a frequência dos ataques na Irlanda do Norte aumentaram nos últimos anos.
Em média, são denunciados quase três crimes de ódio racial por dia para a polícia. Entre 2013 e 2014 houve um aumento de 43 por cento de ofensas movidas por questões raciais, 70 por cento delas em Belfast. Os grupos de imigrantes afirmam - e a polícia acredita - que os números reais são muito maiores, com vários ataques não sendo relatados por causa do medo de reprimendas ou da falta de fé no sistema judicial.
De acordo com um estudo recente da Northern Ireland Commission for Ethnic Minorities (Comissão para Minorias Étnicas da Irlanda do Norte, em tradução livre), apenas 12 dos 14 mil crimes relacionados com questões raciais denunciados nos últimos cinco anos acabaram em ações judiciais de sucesso.
A polícia diz que, mirando nos migrantes, grupos paramilitares estão manipulando a xenofobia cinicamente para conseguir apoio em suas comunidades. Em abril, o chefe de polícia Will Kerr, avisou que o aumento no número e na severidade dos crimes de ódio racial nas regiões protestantes legalistas deixou "um gosto ruim de uma certa limpeza étnica".
Mas Patrick Yu, diretor executivo da Northern Ireland Commission for Ethnic Minorities, acredita que é simplista afirmar que algumas comunidades são intrinsicamente racistas.
- Por acaso, a maior parte das casas disponíveis para aluguel privado está nas áreas dos legalistas, onde já existe uma desconfiança a respeito das pessoas de fora e um sentimento de ter sido deixado para trás pelos católicos que, eles acreditam, se beneficiaram de maneira desproporcional com o acordo Good Friday. Ainda há um imenso problema social nessas áreas, e acho que sectarismo e racismo são dois lados da mesma moeda - e os dois precisam ser abordados - disse Yu.
Apesar de menos comuns, os ataques também aconteceram na região católica de Belfast Oeste. Em junho, centenas de pessoas fizeram uma passeata na área para apoiar um nigeriano hospitalizado depois de um ataque racista. Seus agressores também ameaçaram atropelar sua filha de dois anos e colocar fogo em sua casa.
Existe ainda a preocupação de que o racismo casual e a ignorância determinada estejam se espalhando, o que fica evidente com uma bandeira da Ku Klux Klan hasteada na região legalista de Belfast Leste em julho. No mesmo mês, o time Ulster Rugby pediu desculpas por uma foto em que três de seus jogadores aparecem usando maquiagem negra e um deles tem uma corrente em volta do pescoço como se fosse um escravo.
No verão, o pastor protestante fundamentalista James McConnell atraiu muitas reprimendas depois de falar para sua congregação que "o islamismo é pagão; o islamismo é satânico; o islamismo é uma doutrina gestada no inferno".
Anna Lo, a única representante de minorias étnicas da Assembleia da Irlanda do Norte, relembra a noite em que ouviu o primeiro ministro da província, Peter Robinson, apoiar McConnell dizendo que "não havia uma gota de ódio nele".
- Fiquei gritando com a televisão. Não podia acreditar nesses pontos de vista - contou ela em uma entrevista.
A fala de Robinson levou Lo a fazer uma aparição emocionante em um popular show de entrevistas no qual ela disse que estava pensando em se mudar de país. Lo, que nasceu em Hong Kong, vive na Irlanda do Norte desde 1984. "Em que tipo de lugar estamos vivendo agora? Eu me sinto tão vulnerável que acho que quando ando na rua posso ser atacada", disse ela.
Os dois homens finalmente se desculparam por seus comentários.
Na Inglaterra, os imigrantes são quase 12,4 por cento da população, comparado com 1,8 por cento da Irlanda do Norte. Ainda assim, o número é maior do que os 0,8 por cento de 2001, com a maior parte deles vindos da Polônia depois que o país entrou para a comunidade europeia em 2004.
Muitos imigrantes dizem que toleram os abusos por questões econômicas: os trabalhadores aqui podem esperar ganhar bem mais do que em seus países de origem.
Outros não podem voltar nem se quiserem. "Percebo que é meio irônico que eu tenha trocado o medo que sentia em meu país por um de outro tipo aqui", afirma Suleiman Abdulahi, que fugiu da Somália depois que a guerra civil estourou no país em 1991.
A nova onda de imigrantes com certeza não trouxe muita segurança.
- É a minha casa, mas não me sinto uma habitante muito bem vinda - conta Olorunda, com seu forte sotaque da Irlanda do Norte.
- Quando começou a chegar mais gente, fiquei feliz. Mas aí os ataques passaram de verbal para físicos e eu passei a achar que pode não ser uma coisa muito boa - disse ela.
Olorunda conta que aguentou racismo a vida todo e que continua na Iranda do Norte principalmente para cuidar da mãe, que nunca se recuperou da perda do marido. Ele morreu em 1980 quando uma bomba do IRA (Exército Republicano Islandês) explodiu em um trem.
Em uma reviravolta que mostra como esta sociedade pode ser pequena, anos depois, em um hospital, a mãe de Olorunda, que é enfermeira, conheceu um homem desfigurado que era o responsável pela morte de seu marido. Ela aceitou as desculpas do homem, apesar de ter criado sozinha de três filhas pequenas.
Nascida e criada aqui, Olorunda diz que ela e a outra irmã estão pensando em ir se juntar à irmã que mora em Londres.
- Eu adoro as pessoas, o humor, o senso de espaço. Mas minha irmã e eu sempre dissemos que não vamos terminar como duas velhinhas na Irlanda do Norte - conta ela.