
A suspensão por tempo indeterminado da reintegração de posse de um terreno particular ocupado por cerca de 300 famílias na zona sul de Porto Alegre levantou o debate sobre o direito à propriedade, o déficit habitacional e o papel da administração pública na gestão urbanística das cidades.
Na manhã de segunda-feira, depois que manifestantes bloquearam o trânsito na Capital, o governo do Estado decidiu protelar por 24 horas o cumprimento da desocupação da área no bairro Hípica. Mais tarde, a desembargadora plantonista do Tribunal de Justiça Ana Paula Dalbosco emitiu um despacho que condiciona a reintegração ao julgamento do mérito do recurso.
O advogado Alexandre Camacho Escobar, que representa a proprietária do terreno no processo, irá recorrer da decisão, porém o recesso da Justiça, que começa no próximo dia 20, deve impedir a votação do recurso até o fim do ano, possibilitando a permanência das famílias no local por mais tempo.
A divergência de interpretações entre os magistrados de primeiro e segundo graus lança dúvida sobre a interpretação da lei e chama atenção outros temas no processo. O Estatuto das Cidades, aprovado em 2001, estabelece a função social da propriedade, com possibilidade de sanções a proprietários de imóveis ociosos ou abandonados, como aumento progressivo de impostos e até desapropriação por valores abaixo do preço de mercado. Essa legislação relativizaria o direito à propriedade previsto no Código Civil.
- Teoricamente, seria um equívoco julgar reintegração apenas com base no Código Civil e no Direito Privado. O proprietário não tem o direito de usar um imóvel meramente como reserva de valor, porém cabe ao município estabelecer como a cidade será ocupada - diz a doutora em planejamento urbano Betânia de Moraes Alfonsin, professora da PUCRS e da Faculdade do Ministério Público.
O problema, segundo a especialista, é que o poder público tem se omitido nesse papel, o que leva muitas famílias de baixa renda a ocuparem terrenos particulares.
Para o vice-presidente da Associação Gaúcha dos Advogados do Direito Imobiliário Empresarial (Agadie), José Euclésio dos Santos, que também é integrante do Conselho do Plano Diretor de Porto Alegre, ainda que o imóvel não esteja cumprindo a chamada função social, isso não justifica a ocupação por terceiros.
- Quem comprou o terreno deve tomar providências para dar uma destinação, mas as sanções cabem ao ente público e não a movimentos orquestrados para fazer invasões - afirma.
Argumentos diferentes
Pela reintegração
O juiz Alex Gonzalez Custodio, que havia determinado a reintegração de posse do terreno no bairro Hípica, na Capital, em primeira instância, disse que "invasão de área é agressão à propriedade alheia. Não adianta invadir alegando que quer dar função social. O Estatuto das Cidades não legitima uma conduta ilícita, e a invasão é uma conduta ilegal."
Pela suspensão
Procurada, a desembargadora Ana Paula Dalbosco não concedeu entrevista. No texto da decisão da liminar suspendendo a reintegração, a magistrada cita o "requisito da irreversibilidade", argumentando que a ação deixaria sem teto 1,5 mil pessoas, incluindo 120 crianças, 40 idosos e duas gestantes "justamente às vésperas das festividades de fim de ano". Ela menciona a tradição do indulto natalino "às pessoas condenadas ou submetidas à medida de segurança".