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Cravada no cimento do santuário que lembra a morte de 194 pessoas na boate República Cromañón, em Buenos Aires, a frase "tua alma viajará pelos céus, navegará os mares e, quando se fizer justiça, baixará à terra", dá uma ideia da luta dos argentinos para que o incêndio, muito semelhante ao da Kiss, em Santa Maria, não ficasse impune.
Passados 10 anos, apesar de 28 pessoas terem sido responsabilizadas criminalmente e metade ter sido presa, familiares das vítimas têm a sensação de que o número de culpados pelo sinistro deveria ter sido maior. Das semelhanças com a tragédia que há quase dois anos matou 242 pessoas em Santa Maria, está também a lentidão do processo na Justiça, que teria demorado cerca de três anos para condenar o primeiro réu. Neste ano, uma década depois, ainda houve condenação, a do proprietário do imóvel no bairro Once, onde ficava a danceteria. O rigor argentino, no entanto, foi maior desde o começo.
- Sentimos que lá não tem esse senso de impunidade que está tendo aqui - diz o advogado Luiz Fernando Smaniotto, que representa a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria.
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No mês passado, Smaniotto e Paulo Carvalho, diretor do núcleo da associação em São Paulo, estiveram em Buenos Aires para participar do simpósio Tragédias Evitáveis e conhecer como foi o andamento do processo. Pai de Rafael, vítima do incêndio na Kiss, Carvalho lembra que, no caso argentino, o prefeito perdeu o cargo por ser considerado responsável pelos atos dos subordinados.
- Eles conseguiram muito mais do que aqui. Conseguiram que todos fossem julgados, que o prefeito fosse afastado quase que imediatamente. A diferença principal é o setor público. No caso da Kiss, tirando os bombeiros, as pessoas estão totalmente fora dos julgamentos - diz Carvalho.
No país vizinho, familiares pretendiam incriminar mais cem funcionários públicos, que não fiscalizaram a boate entre 1997 e 30 de dezembro de 2004, data do incêndio. Secretária e coordenadora de Saúde da ONG Familias por la Vida, Lila Tello, que perdeu o genro e viu a filha sobreviver ao fogo que disseminou fumaça tóxica na Cromañón, afirma que nenhuma pena parece suficiente para os familiares.
- Diante da perda de um ente querido e de ter vivido essa experiência, nada é capaz de reparar - desabafa Lila.
Enquanto no caso da Kiss os quatro principais acusados foram soltos meses após o incêndio, no da Cromañón cinco pessoas permanecem presas. Há ainda os que esperam em liberdade a confirmação das condenações no Tribunal de Cassação. Em Santa Maria, o processo criminal está na fase de instrução. Especialistas da área judiciária estimam que um julgamento possa ocorrer somente seis anos após a tragédia.
Como estão os dois casos
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Cromañón
Data do incêndio: 30 de dezembro de 2004.
194 vítimas fatais e 700 feridos.
Ao todo, 28 pessoas foram responsabilizadas criminalmente pelo incêndio. Desse total, 14 foram presas e cinco ainda permanecem detidas.
A pena mais alta, de 10 anos e nove meses, foi aplicada ao gerente da República Cromañón, Omar Chabán. Ele morreu em novembro deste ano, vítima de câncer, enquanto cumpria prisão domiciliar.
Entre os condenados, estão oito integrantes do Grupo Callejeros (por soltar rojões na boate), com penas de até sete anos de prisão, e autoridades policiais e da prefeitura, acusadas de omissão e falta de fiscalização.
Em agosto deste ano, a Corte Suprema aceitou um recurso para revisar as condenações, e os músicos da banda, funcionários do governo e o braço direito de Chabán foram soltos.
Menos de dois anos depois do incêndio, em março de 2006, o então prefeito de Buenos Aires Aníbal Ibarra foi submetido a juízo político e inabilitado por 10 anos. Foi responsabilizado pelos atos dos subordinados.
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Kiss
Data do incêndio: 27 de janeiro de 2013.
242 vítimas fatais e 636 feridos.
Os sócios Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão respondem por homicídio e tentativa de homicídio com dolo eventual qualificado. Eles foram soltos quatro meses após o incêndio.
O processo está na fase dos depoimentos das testemunhas de defesa, que tem audiências marcadas até março de 2015, mas pode se estender.
Também na esfera criminal, processos por falso testemunho foram suspensos e um bombeiro responde por fraude processual.
Na esfera cível, quatro membros do Corpo de Bombeiros - Alex da Rocha Camillo, Daniel da Silva Adriano (reserva), Moisés Fuchs (reserva) e Altair de Freitas Cunha (reserva) - foram acusados de improbidade administrativa. O prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, foi isentado de culpa por falta de provas.
Na esfera militar, há acusações de declaração falsa e prevaricação.