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O pianista israelense Idan Raichel estava no aeroporto de Berlim, em 2008, quando viu o guitarrista malinês Vieux Farka Touré e decidiu se apresentar. Desse encontro fortuito resultaram uma das parcerias mais interessantes da world music, CDs elogiados pela crítica e uma amizade duradoura que supera as diferenças culturais.
Porém, mesmo para os dois, é difícil caracterizar o som da Touré-Raichel Collective.
- É um pouco lá, um pouco cá. Foi a frase que Raichel, de 37 anos, usou para descrevê-la em uma entrevista recente.
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- Nós dois somos muito influenciados por nossas raízes, que são super tradicionais. É como ter dois chefs, um de Taiwan e o outro do México. Se forem preparar os clássicos, vão acabar encontrando um ponto comum, afinal, parte dos ingredientes, tipo sal e açúcar, são os mesmos, completa.
Surgiram inúmeras parcerias entre músicos ocidentais e de tradições africanas nos últimos 25 anos, principalmente desde o sucesso de vendas e crítica de "Talking Timbuktu", de 1994, álbum que ganhou um Grammy e uniu dois guitarristas: o norte-americano Ry Cooder e o malinês Ali Farka Touré, pai de Vieux, às vezes chamado de "John Lee Hooker da África Oriental" por causa do blues incipiente que se sente em seu som.
A Touré-Raichel Collective leva o conceito de parceria a um terreno novo e pouco explorado, pois geralmente não se associa o piano à música da África Ocidental - pelo menos foi o que Touré disse antes de conhecer Raichel, tendo sempre utilizado instrumentos de cordas como a kora, parecida com a harpa, e o ngoni, para dar um novo colorido à sua música. E embora adore o som do piano, no início da parceria, teve dificuldades para se adaptar.
- Às vezes eu tinha que aprender o que ele tocava. Tinha que perguntar e ficava olhando, prestando atenção. Mas o mais importante é o costume. Agora é moleza, não precisamos mais nem de ensaio, é só chegar e tocar, o que é muito bom.
Em novembro de 2010, Raichel organizou uma apresentação de Touré na Casa de Ópera de Tel Aviv; depois disso, se juntou a ele no estúdio, na companhia de um grupo de percussão, para uma jam session de mais de três horas, que foi gravada mais como lembrança para os participantes que qualquer outra coisa - mas quando o etnomusicólogo e produtor norte-americano Jacob Edgar, das gravadoras Cumbancha e Putumayo, ouviu o resultado, ficou fascinado.
- Hoje a música é tão controlada e produzida que você não ouve mais esse tipo de som natural, orgânico. São quatro caras tocando ao vivo num estúdio, sem preparo nem ensaio, sem plano nenhum, só ali, sentados, criando em cima do que sentiam, com a capacidade até de ler a mente uns dos outros, de tão concentrados que estavam, disse.
Depois de Raichel ter passado meses editando a música em forma de canções, "The Tel Aviv Session" foi lançado no início de 2012, chegou ao topo da parada world music da Billboard e do iTunes, levou a uma turnê mundial e à gravação de um segundo CD, "The Paris Session", lançado em outubro.
O novo álbum, um trabalho fluido mas bem estruturado, tem faixas que vão desde uma oração cantada em hebraico a canções de amor em bambará, francês e songai (idiomas falados no Mali). Deveria ter sido gravado em Bamako, a capital do Mali, mas o tumulto causado por militantes islamitas ligados a al-Qaeda forçaram a mudança para a França.
Com isso, a coletiva aproveitou para incorporar instrumentos ocidentais, como o trompete e a flauta, em algumas das faixas. A parceria exigiu ajustes, mas também estimulou os dois a extrapolarem suas tradições. Raichel é descendente de europeus orientais, mas ouvia muita música etíope e iemenita na adolescência e é mais conhecido em Israel por seu trabalho na música pop.
Nos últimos anos, ele também trabalhou com vocalistas como a cantora de fado portuguesa Ana Moura, o contratenor alemão Andreas Scholl e os norte-americanos India.Arie e Alicia Keys, que o descreve como alguém que une culturas e promove a tolerância.
- É a primeira vez que faço um álbum inteiro numa mesma parceria. Durante o processo, aprendi a tocar piano de um jeito menos conservador, tentando fundir sons novos, conta Raichel.
Já Touré deu duro para estabelecer uma identidade e um estilo diferentes dos do pai, figura importante da música, falecido em 2006.
- Vieux cresceu ouvindo rock e outros estilos ocidentais populares e isso o tornou um pouco mais ousado que o pai e menos arraigado às tradições, explica Edgar.
Em homenagem ao revolucionário "Talking Timbuktu", de Ali Farka Touré, tanto "The Paris Session" como as apresentações ao vivo da coletiva - que, nesta turnê contou com Souleymane Kane na cabaça e Yogev Glusman no baixo - incluem "Diaraby", a música mais conhecida do álbum.
A diferença é que, em vez do diálogo feérico entre as guitarras do original, a versão Touré-Raichel enfatiza a melodia cristalina e é apresentada como um dueto simples de voz e piano.
Embora os dois artistas tenham planos de continuar explorando o potencial que a combinação de seus estilos tem a oferecer, tanto Raichel como Touré têm consciência da dimensão política do que estão fazendo.
Em um momento em que o caos no Oriente Médio é maior que o normal, assim como a tensão entre israelenses e palestinos, o simbolismo de um judeu e um muçulmano trabalhando juntos é inevitável, mesmo que alguns grupos pró-Palestina acusem Raichel de ser um apologista do Exército israelense.
- O pessoal pergunta toda hora por que estou fazendo isso e respondo que, para mim, não tem nada a ver com religião. Você tem a sua, eu tenho a minha e não é porque sou muçulmano e ele não é que resolvemos trabalhar juntos. Estou aberto à música de todas as partes do mundo. Ninguém deveria dizer: 'Ah, sou judeu, não vou tocar com muçulmanos', ou 'Sou muçulmano, não vou tocar com cristão'. É por isso que temos tantos problemas nesse mundo", resume Touré.
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