A negritude de Obama é uma vitória fundamental dos negros americanos, certo?
Errado.
Sou obamista convicto, mas reconheço a melancólica verdade: Obama não representa o negro americano. Porque ele não é descendente de escravos. Seu pai é queniano; sua mãe, branca de leite. Durante a campanha, assessores empenharam-se para lhe traçar a árvore genealógica e tentar provar que, entre seus antepassados por parte de mãe, estava não apenas um escravo, mas o primeiro dos escravos americanos. Claro que poucos acreditam nisso. O que não importa mais: Obama já se elegeu.
Resta a questão: se ele de fato se soubesse descendente de escravos, demonstraria igual confiança e serenidade?
Duvido.
Descendentes de escravos têm história parecida com a de Malcolm X. O pai de Malcolm foi espancado brutalmente por homens brancos e jogado nos trilhos do trem para ser atropelado. Teve o corpo praticamente partido em dois. Sobreviveu por horas, sentindo dores atrozes até morrer. A mãe de Malcolm, empobrecida, acabou enlouquecendo. Ele foi separado dos irmãos e levado para um orfanato.
Existe chance de alguém, com um passado desses, não ser um revoltado?
Os negros americanos são revoltados. Não apenas por sua história privada, mas pela história de seu povo em geral.
São muitos os povos que formam os Estados Unidos, como já disse, e os negros foram colocados abaixo de todos eles.
A infância de um país é como a de um indivíduo: decisiva na formação da personalidade. O Brasil começou pelas capitanias hereditárias, cada qual com um dono. Depois, experimentou um longo período de monarquia.
Então, o comum das pessoas estava posto sob os donatários das capitanias ou sob a nobreza que cercava o rei.
Nos Estados Unidos, os pioneiros fundadores das 13 colônias vieram com suas famílias e estabeleceram-se em pé de igualdade para criar uma nova nação. Nunca houve um rei ou um ditador nos Estados Unidos. Desde o início, alcançou-se consenso no que Rousseau chamava de "contrato social" - quem veio para cá, veio para viver sob a lei. Lei que os próprios colonos escreveram.
O objetivo dos homens que se mudaram para o norte da América era inventar um lugar em que se vivesse com liberdade e igualdade. O objetivo dos homens que se mudaram para o sul da América era ganhar dinheiro.
Os únicos homens aos quais foram negadas a liberdade e a igualdade, nos Estados Unidos, foram os negros. Só em 1865 eles conquistaram a liberdade. Só cem anos depois disso eles conquistaram a igualdade. Assim, os negros sentiam-se oprimidos por todos os brancos, nos Estados Unidos, e sentem-se ainda.
No Brasil, negros e brancos eram oprimidos primeiro pelos donatários das capitanias, depois pelos nobres e, por fim, por todos os que amealham relativa quantidade de dinheiro ou de poder, inclusive eventuais negros ricos e poderosos. No Brasil, não há diferenças significativas entre a miséria de um branco e a de um negro.
É claro que nos Estados Unidos as desigualdades existem e se acentuaram, mas os princípios fundadores do país continuam os mesmos: a mesma intenção dos pioneiros, de dar aos cidadãos garantias de oportunidades iguais e de preservação da individualidade. Os negros, que há apenas 50 anos ganharam os seus direitos civis, se ressentem da opressão dos brancos no sul do país, e os brancos, sentindo esse ressentimento, ressentem-se também.
Os negros pobres brasileiros, de certa forma, irmanaram-se aos brancos pobres brasileiros, e por isso a miscigenação é mais suave no Brasil.
Daí surge a importantíssima concepção que cada povo tem do Estado. Nos Estados Unidos, os cidadãos se sentem formadores do Estado, com exceção dos negros, que não participaram desse pacto. No Brasil, o Estado é uma entidade que está acima do cidadão. O Estado são "eles", e "eles" estão sempre prontos a nos sacanear. Há muito que falar disso. Mas é assunto para outro dia. Um dia qualquer.