Um dos quatro réus acusados pelas 242 mortes na boate Kiss, em Santa Maria, o ex-dono da danceteria Elissandro Spohr, o "Kiko", decidiu partir para o contra-ataque. Ele promete ingressar nesta segunda-feira no fórum santa-mariense com uma ação civil por dano moral, em que pedirá indenização a autoridades municipais e a um integrante do Ministério Público Estadual. O empresário alega que o incêndio no estabelecimento só aconteceu porque fiscais da prefeitura de Santa Maria e um promotor de Justiça, mesmo tendo feito inspeções na boate, jamais apontaram qualquer problema que pudesse oferecer risco aos frequentadores do local. Kiko promete doar o valor obtido na causa aos familiares das vítimas.
- Eu estou sentado no banco dos réus, serei julgado. Mas e os fiscais? E o promotor? Eles vistoriaram a Kiss e nunca me avisaram de problemas que poderiam causar a morte das pessoas. Por que não são julgados comigo? - desafiou o empresário Kiko em recente depoimento prestado à Justiça.
Pois Kiko agora decidiu transformar sua revolta em ação judicial. O empresário quer que o promotor de Justiça Ricardo Lozza pague uma indenização pelo fato de ter firmado com ele um Termo de Ajustamento de Conduta que permitiu à Kiss permanecer aberta. O advogado de Kiko, Jader Marques, alega que em nenhum momento o promotor alertou que a boate não tinha saída de emergência, estava com janelas trancadas ou que a espuma do teto era tóxica (caso queimasse). A preocupação do Ministério Público era eliminar o barulho da música, que incomodava os vizinhos - algo que foi solucionado com a colocação da espuma antirruído.
ESPECIAL: tragédia completa três anos de impunidade
Kiko alega que, se tivesse sido alertado que a boate continha armadilhas mortíferas, teria providenciado mudanças na boate - assim como fez para eliminar o ruído.
"A negligência do Promotor de Justiça Lozza fez o Autor (Kiko) acreditar que poderia manter a casa noturna aberta e receber pessoas para a realização de festas, especialmente depois de todas as audiências e a reafirmação da legalidade de todos os documentos" - diz trecho da ação movida por Kiko.
A mesma contradição aconteceu em relação aos fiscais municipais, que não apontaram problemas, alega Kiko. Tanto que a danceteria recebeu da prefeitura alvará para funcionamento.
Como base para a ação cível, o advogado Jader Marques usa o inquérito policial que em 22 de março de 2013 responsabilizou seis autoridades municipais por improbidade administrativa no Caso Kiss. São elas Cezar Schirmer (prefeito), Luiz Alberto Carvalho Junior (ex-secretário de Proteção Ambiental), Marcelo Bisogno (vereador e ex-secretário de Controle e Mobilidade Urbana), Marcus Vinícius Bittencourt Biermann (ex-funcionário da Secretaria de Finanças), Beloyannes Orengo de Pietro Júnior (ex-chefe de fiscalização da Secretaria de Controle e Mobilidade Urbana) e Miguel Passini (atual secretário de Mobilidade Urbana, na época do incêndio, era o titular da pasta que chamava-se Controle e Mobilidade Urbana).
Bombeiros condenados podem perder salário e cargo
A Polícia Civil aconselhou que fosse aberta ação de improbidade administrativa contra todos eles, mas isso não aconteceu. Agora o réu Kiko deseja que eles o indenizem por não terem alertado para os problemas da boate que levaram à tragédia.
Sobre Schirmer e seus secretários, a ação afirma ser evidente que "estavam plenamente cientes das condições da empresa, dos prazos de alvará, da pendência de pedidos de renovação. E, como gestores públicos com dever de agir, jamais operaram para que a situação se resolvesse".
A ação também é movida contra o Estado do Rio Grande do Sul (entidade jurídica), a prefeitura de Santa Maria (entidade jurídica) e contra cinco bombeiros que fiscalizaram a boate e não apontaram riscos para os frequentadores. Uma outra ação é movida contra os dois músicos da banda que dispararam artefatos incendiários no palco (Kiko alega "lucro cessante" pela perda da boate). Todos esses já são processados criminalmente.
Jader Marques pede que cada réu seja condenado a pagar 40 salários-mínimos como indenização (cerca de R$ 35 mil). Kiko assegura, na ação movida, que o valor recebido será integralmente doado para a Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), "para que continue seu trabalho em favor das pessoas atingidas pelo incêndio".
TRECHO DA AÇÃO
"A família de Elissandro (Kiko) adquiriu o empreendimento depois que todos os documentos necessários já haviam sido concedidos pelo poder público, inclusive, já estando alguns deles em fase de renovação. A boate Kiss possuía regularidade documental perante a Prefeitura Municipal e perante os Bombeiros, quando foi adquirida e passou a ser administrada por ele. Kiko acreditava que havia atendido a todas as exigências dos bombeiros e da Prefeitura ao obter os respectivos alvarás. Ainda, com a certeza de que estava no devido exercício de atividade empresarial, o Autor (Kiko) compareceu ao Ministério Público para, nos autos de um inquérito civil, adequar o empreendimento a mais uma série de exigências".
CONTRAPONTOS
O que diz o promotor Ricardo Lozza:
"Eu não tomei conhecimento desse documento ainda. Pretendo me pronunciar depois que receber o teor. Mas acredito que, se fosse o caso, a ação deveria ser contra o Estado e Prefeitura, não contra pessoas".
O que diz o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer:
A reportagem fez cinco ligações para o prefeito, que está em férias. Na primeira, sua esposa atendeu e pediu que retornasse a chamada. Nas outras quatro, ninguém atendeu.
O que diz Marcelo Bisogno:
"A boate começou a funcionar dois anos antes de eu assumir a secretaria, não fui eu quem permitiu o funcionamento da boate. No período em que fui secretário a documentação da boate estava em dia, e quando saí, o alvará dos bombeiros estava em dia. Cumpri meu papel, cumpri a legislação. Tanto que a justiça nunca me acionou para nenhuma responsabilidade."
O que diz Miguel Passini:
"Para mim, esse é um caso encerrado. Não vou comentar."
O que dizem Luiz Alberto Carvalho Junior, Marcus Vinícius Bittencourt Biermann e Beloyannes Orengo de Pietro Júnior:
A reportagem não conseguiu contato com eles e deixou recado nos celulares, solicitando entrevista.
ESPECIAL: tragédia completa três anos de impunidade
Nesta semana se completam mais de mil dias desde a maior tragédia gaúcha, o incêndio da boate Kiss, que matou 242 pessoas e feriu mais de 600, em Santa Maria. Foi há três anos, mas, para os familiares das vítimas, o tempo parou. Dezenas de pais mantêm quartos e objetos dos filhos intocados, como se a porta fosse se abrir e os entes queridos, voltar.
A maior expectativa dos parentes das vítimas é em relação à Justiça. Eles saíram da esperança para a descrença. Poucos imaginam que os processos judiciais resultarão em penas altas para os réus. A maioria critica é a ausência de autoridades entre os processados - ao contrário do que ocorre em outros países, onde governantes foram condenados ou renunciaram por desastres similares ao da Kiss.
Confira o site sobre os três anos da tragédia em Santa Maria, com reportagem especial, vídeos e galerias de fotos, clicando na imagem abaixo.
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