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Não são apenas depoimentos que levaram o delegado Omar Sena Abud e o comissário aposentado em fevereiro deste ano Luiz Armindo de Mello Gonçalves à cadeia. A prisão preventiva dos dois policiais civis foi lastreada pelo Ministério Público Estadual (MP), com dados também levantados pela própria Polícia Civil, num pacote de indícios que inclui contabilidades manuscritas, extratos bancários, declarações de imposto de renda, cópias de remessas de dinheiro e mensagens que teriam sido trocadas entre os homens da lei e ladrões de carga. Criminosos ouvidos por cinco promotores de Justiça relataram ter tomado empréstimos junto aos dois policiais, com objetivo de financiar roubo de caminhões.
No material apreendido pela Operação Financiador estão anotações descritivas de pagamentos supostamente feitos ao delegado. Em uma delas, está escrito "Abud - R$ 100.000", em outro, "Abud - R$ 10.000". Há ainda uma planilha com a sigla "P.S." que, como confirmou um receptador ao MP, trata-se de uma abreviação para Porto Seco, onde Omar Abud atuava como delegado até meses atrás. Seriam programados pagamentos na própria delegacia. Em outro documento apreendido, há anotações a caneta supostamente feitas pelo delegado, ao lado de declarações de imposto de renda. Elas demonstram a evolução de patrimônio não declarado por ele.
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Foi com base nesse manancial de informações que o MP conseguiu, junto à Justiça, a prisão de Abud e Luiz Armindo, que estão enclausurados desde 22 de fevereiro. A dupla foi denunciada esta semana por lavagem de dinheiro e financiamento de organização criminosa. Junto com eles foram denunciados também, a mulher do comissário, o filho deles e um sobrinho do delegado, que teriam emprestado contas bancárias e participado da abertura de empresa de fachada usadas para realizar negócios ilegais.
Os promotores asseguram que os dois policiais agiam como agiotas de bandidos desde 2011, alternando-se entre os empréstimos e cobranças aos grupos criminosos. Mais do que isso, no momento de exigir os pagamentos, eles faziam com que um grupo criminoso repassasse valores a outro, criando uma cadeia que, no final, gerava o lucro ao topo da quadrilha. O esquema consistia no empréstimo de dinheiro para financiar os criminosos, com a cobrança posterior de juros entre 20% e 100% sobre o valor financiado. A estimativa é de que, entre 2013 e 2016, eles tenham lavado mais de R$ 2,1 milhões, mas as investigações prosseguem e podem chegar a valores maiores.
Os integrantes do MP estão convencidos de que os dois policiais sabiam bem que emprestavam dinheiro para bandidos. Há fartura de indícios com relação a essas operações. Mais do que isso, estariam prestando favores às quadrilhas, usando o site Consultas Integradas (banco de dados da Secretaria da Segurança Pública) para informar os criminosos sobre sua situação, a dos seus inimigos e também sobre investigações das polícias. Com relação a isso, a denúncia não dá detalhes.
Empresas de fachada para os financiamentos
Conforme a investigação, a participação dos policiais era capilarizada em pelo menos três núcleos na Região Metropolitana: em Alvorada, Cachoeirinha e Triunfo. Em Cachoeirinha estava o braço mais lucrativo e complexo do esquema. Além da relação direta, com transferências bancárias e entrega de dinheiro em espécie para pelo menos cinco ladrões de cargas e receptadores, o grupo criou uma rede de empresas conhecidas como "araras". Foram detectadas pelo menos três delas em uma operação da Delegacia de Roubos de Cargas, do Deic. A função das "araras", registradas em nomes de laranjas, era fazer compras de grandes volumes de cargas e obter crédito no mercado. Elas desapareciam sem pagar pelas cargas e revendiam o material.
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Conforme o MP, o financiamento dos policiais a este grupo foi superior a R$ 1 milhão entre 2014 e 2016. Em Alvorada, as relações se deram com uma quadrilha que, para repassar produtos de roubos, criou um supermercado. A este grupo, já denunciado pelo MP, os financiadores teriam repassado - com comprovantes bancários - pelo menos R$ 123 mil.
Já em Triunfo, a denúncia aponta que os financiamentos eram repassados diretamente para ações armadas, e com o uso de adolescentes. A este grupo, foram detectados pela quebra de sigilo bancário repasses de pelo menos R$ 155 mil.Parte do dinheiro repassado era disfarçado sob a forma compras das empresas de fachada, dando aparência de negócio lícito. O repasse e a devolução dos valores com juros, por vezes, tinham as próprias contas bancárias nos nomes dos dois policiais como destino ou origem. Em outras oportunidades, eram usadas contas dos familiares denunciados pelo MP e até mesmo uma empresa, supostamente especializada em serviços de portaria, criada por Luiz Armindo nos nomes da mulher e do filho.
Na denúncia por lavagem de dinheiro, o MP descreve pelo menos seis indícios da aplicação dos valores obtidos com ações criminosas em imóveis e carros de luxo. Nada teria sido declarado à Receita Federal.
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Em 2015, Omar Abud comprou um apartamento no valor de R$ 550 mil em Capão da Canoa. No ano seguinte, adquiriu um apartamento com três vagas de estacionamento na Rua Cananeia, Vila Jardim, por R$ 950 mil. De acordo com a investigação, o imóvel estava avaliado em R$ 1.258.000. Antes dos dois imóveis, em 2014, o delegado fez duas compras pouco comuns.
Primeiro, em janeiro, adquiriu um Mercedes Benz C180, avaliado em R$ 80 mil. Três meses depois, comprou um Mercedes Benz C200, de R$ 120 mil. A suspeita de lavagem de dinheiro é reforçada pela venda, menos de sete meses depois, dos dois veículos. A movimentação não foi declarada.
Já o comissário aposentado Luiz Armindo de Mello Gonçalves, quando ainda exercia suas funções na Polícia Civil, em 2010, deu entrada em um lote no condomínio de luxo Sea and Coast, em Capão da Canoa. Na Capital, ele e os familiares - usando o nome da empresa que haviam criado - se tornaram empreendedores. Construíram casas avaliadas em R$ 750 mil no bairro Jardim Itu Sabará para a venda e aluguel.
Ameaças pelo WhatsApp
O fato de ter cometido crimes, por si só, não costuma justificar a prisão de uma pessoa. O que levou, então, a Justiça a decidir pela prisão do delegado Abud?
O MP sustentou o pedido de prisão preventiva em ameaças que o delegado teria feito a testemunhas e a um próprio colega policial, que investigava o caso. São recados velados, mandados pelo aplicativo WhatsApp, mas que foram interpretados pelos promotores de Justiça como "embaraço à investigação, constrangimento de testemunha e intimidação". Num dos diálogos, gravado em celular, Abud recebe de um receptador de cargas roubadas um recado:
Receptador - Sou eu. Podemos nos encontrar?
Abud - Amanhã. Quero falar contigo olhando nessa tua cara porca...
Receptador - (leu a mensagem)
Abud - KKK...era para mexer contigo. Para dizer que tu sumiu. Me abandonou...Era para te xingar.
Receptador - Tô todo cagado...
Na continuidade, o receptador pergunta que horas pode ser o encontro no dia seguinte. Abud responde:
Abud - Vai se tu quiser. Já não sei mais nada...quem é quem.
Receptador - Eu não tô lhe chamando mais, pois combinamos de dar um tempo no contato, para não deixar rastro.
Abud - Não tem rastro. Tu és meu amigo. Ou era...Mas tranquilo.
Já o policial que investigava um caso de roubo teria sido abordado mais de uma vez por Abud, em prédios de delegacias. Num dos episódios, Abud teria dito que é delegado antigo "e agia "à moda antiga". Em seguida, teria perguntado sobre a família do outro delegado. Para os promotores de Justiça, isso era uma insinuação de que algo poderia acontecer com a integridade física e moral dos parentes do policial. "Nessas oportunidades, sempre querendo fazer valer sua ascendência hierárquica na carreira como delegado de classe superior e sua alegada maior experiência, Abud disse ao colega: "tu bateu nos meus guris", para que este não aprofundasse as investigações", diz trecho da denúncia.
A pedido do MP, para garantir a segurança dos supostos ameaçados, Zero Hora não publica seus nomes.
CONTRAPONTOS
O que diz Paulo Moreira, advogado de Luiz Armindo de Mello Gonçalves:
ainda não li a denúncia por completo, estou me inteirando do caso para organizar a defesa, mas não vejo motivos para que ele permaneça preso. Pretendo formular um pedido de liberação da prisão preventiva.
O que diz André Callegari, advogado de Omar Abud:
Callegari diz que aquilo que é interpretado como ameaça a um dos receptadores pode não ser, já que os dois são amigos de longa data, Abud é padrinho de um filho dele.
– Além disso, essa testemunha negou, em outro depoimento, ter sido ameaçado pelo delegado – diz o advogado.
Callegari afirma que Abud desconhecia atividades ilícitas desse receptador, já que o homem possui empresa estabelecida.
– Contratamos um perito contábil que vai mostrar que o delegado tem aporte financeiro para os bens que possui e para as cifras mencionadas no inquérito – alega Callegari.