
O segundo turno da eleição deste ano definiu os novos governantes de 57 municípios do país, mas o grande vencedor ficou de fora desta lista. Correndo por fora dos palanques, o "não voto" bateu recorde e acabou eleito como melhor opção por 10,7 milhões de brasileiros – o que representa 32,5% do eleitorado que votou no último domingo. É o maior percentual de abstenções, brancos e nulos já contabilizado em um segundo turno desde que o Tribunal Superior Eleitoral passou a divulgar estatísticas digitalizadas, em 2004. Tanto que, em Porto Alegre, essa opção angariou 30 mil votos a mais do que os recebidos pelo futuro prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB). E o fenômeno se repetiu país afora. No Rio, 41% do eleitorado não participou da escolha que resultou na vitória de Marcelo Crivella (PRB), maior patamar entre as Capitais.
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Associado a um desencanto com a política, o fenômeno segue uma curva ascendente. No segundo turno de 2012, por exemplo, o total de abstenções, brancos e nulos foi de 26,5%, quase seis pontos percentuais menor do que o atual. Ainda que haja discussão sobre o número real de abstenções, já que em cidades onde houve recadastramento biométrico o índice diminuiu, o crescimento é considerado expressivo por especialistas. Se levados em conta apenas os votos brancos e nulos, o salto foi de 9,2%, no segundo turno de 2012, para 14,3% dos eleitores no domingo passado. Mas que consequências essa opção (ou a falta dela) traz? Se um dos pilares do sistema democrático é o voto, a progressiva recusa dos eleitores em participar dessa escolha poderia colocar em risco a própria democracia? Estamos vivendo um momento singular ou uma escalada consistente?
Analistas ouvidos pelo caderno DOC avaliam que, ao menos por enquanto, a democracia vai bem, obrigada. Não estaria ameaçada enquanto sistema. Mas alertam: a mensagem das urnas precisa ser ouvida pelos partidos. Porque é eloquente. E clama por mudanças reais, não apenas troca de jingles, siglas e rostos nos gabinetes. É uma ausência que grita.
– É um sinal amarelo muito forte, quase vermelho, porque a descrença está muito grande – avalia o advogado e pesquisador na área de política e judiciário Lincoln Noronha, doutorando em ciência política pela USP.


Na sua avaliação, a deserção dos eleitores estaria relacionada a dois fatores principais: de um lado, a desconfiança da classe política, arrebatada pelos escândalos recentes escancarados pela Operação Lava-Jato. De outro, disputas locais marcadas por conjunturas menos acirradas – seja por previsibilidade do resultado, seja pelo fato de os eleitores não se sentirem representados por nenhuma das candidaturas.
– Quando a disputa está mais acirrada, as pessoas sentem que o voto delas pode fazer a diferença, o que em muitos lugares não aconteceu, e isso reduz a participação – observa Noronha.
Em um estudo que examinou os resultados desde 1985 até 2016 das eleições a prefeito em Curitiba, o professor Emerson Cervi, do programa de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR), obteve uma amostra mais precisa do fenômeno. Ao calcular quantos votos válidos havia em cada eleição com relação a cada não voto, para medir um indicador chamado razão de voto válido, constatou que a legitimidade desta eleição é a menor da série histórica.
– A ideia desse índice não é olhar partido ou quem ganha, mas quanto há de participação para legitimar o eleito. Se tiver uma razão de 10 votos válidos para cada não voto, por exemplo, significaria que o eleito teve uma grande legitimidade. Se tiver uma razão de um voto válido para cada não voto, ainda que o candidato tenha feito 90% dos votos, ele não estaria legitimado, porque muita gente não participou – explica.
O resultado mostra que, nesta eleição em Curitiba, que elegeu Rafael Greca (PMN), houve a menor razão de votos válidos desde a redemocratização, tanto no primeiro quanto no segundo turno. No primeiro, a razão foi de 2,6. No domingo, caiu para 2,1.
– Até então, a nota mais baixa tinha sido a de 1992 (2,8), após o impeachment do Collor. E o interessante é que naquela eleição e nesta foi o mesmo prefeito eleito, o Greca. Ele é o cara que vem depois do tsunami – compara.
Para o professor, essa tendência de deslegitimação eleitoral está relacionada a um processo de "criminalização da política", que teria se acentuado nos últimos anos, na esteira de operações como a Lava-Jato e da cobertura midiática dos escândalos.
– Mesmo que se tente criminalizar um partido, para o eleitor a crise é geral, e isso o afasta. Quem perde são todos os integrantes da elite política, todos os partidos e os prefeitos eleitos. Não diria que é uma ameaça ao sistema democrático, mas é um problema para os líderes partidários e novos representantes, que vão ter mandatos mais frágeis. Não me parece que a democracia esteja em jogo, mas há quase uma posição deliberada de enfraquecimento da representação política e de fortalecimento de outras formas de representação, em especial por agentes burocráticos do Estado – interpreta o cientista político.
Ainda assim, Cervi não acredita que o não voto seja uma tendência irrefreável.
– São ciclos políticos que a gente tem que passar. Estamos no final de um ciclo, que coincidiu com a Lava-Jato, aumentou a rejeição do brasileiro em relação à política e o medo dos políticos de irem para cadeia. Isso fez com que todo o sistema político se desestabilizasse – salienta.
Na visão da professora Vera Chaia, do departamento de Política da PUCSP, a recusa dos eleitores em participar das urnas tem um viés positivo. Diante de um sistema adoecido por escândalos e negociatas, a massa insatisfeita mostra que não será conivente em respaldá-lo.
– Do ponto de vista da democracia é altamente salutar, porque mostra que muita coisa tem que mudar, senão vai ficar na mesma. O eleitor quer mudança, quer votar em quem ele confia, em quem tem proposta, não porque é obrigado a votar. Isso mostra aos políticos, à democracia, que são necessárias mudanças no sistema eleitoral, partidário, e com isso fica aberta a possibilidade de alteração no sistema para ampliar a confiança no eleitor – avalia.
Os críticos desse comportamento eleitoral costumam argumentar que quem se omite acaba governado pelos que se posicionam. Mas, segundo Vera, esse discurso tem pouco efeito sobre os que optam pelo não voto porque, na visão deles, não há verdadeira escolha.
– Nada vai mudar do ponto de vista deste eleitor, ele está se negando a participar desse processo, e isso tem de ser respeitado – opina.
Entre as mudanças que precisam ser discutidas para o aperfeiçoamento do sistema, a cientista política considera que seria saudável incluir a opção pelo voto facultativo, sistema em vigor em democracias maduras como os Estados Unidos e países europeus. No Reino Unido, por exemplo, 34% dos eleitores se abstiveram de votar nas eleições de 2015, que reconduziram David Cameron a um mandato de cinco anos após seu partido conquistar maioria no Parlamento. Uma das vantagens do voto facultativo, avalia a professora da PUCSP, seria que os partidos teriam de convencer o eleitor a votar – e apresentar propostas políticas consistentes.
– Hoje o eleitor vota sem vontade, é obrigado, e muitos se negaram a votar, porque não veem sentido, nada muda. É um recado muito claro do eleitor em relação ao nosso sistema político. Tivemos o impeachment, mas isso não significou mudança no sistema. O presidente atual continua a mesma prática política, com os mesmos vícios de distribuição de cargos, e o eleitor sabe o que está acontecendo, vê que não ocorreram mudanças fundamentais. A resposta do eleitor é negar a política e o processo eleitoral – diagnostica.
Para o sociólogo José Maurício Domingues, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e pesquisador associado do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, é preciso compreender a lição dessa ausência.
– Mesmo que falem que as abstenções tenham a ver com o recadastramento eleitoral, não creio que seja por isso. A gente vem vendo um crescimento desses votos, e nesta eleição isso ficou particularmente acentuado. Não é por acaso que as pessoas pararam de votar, ou estão votando branco e nulo. As pessoas não estão vendo que a democracia está realmente próxima a elas, servindo para os projetos em que as pessoas se colocam por direito, por participação. Não é só que não tem um candidato para votar, é uma desilusão mais profunda. Houve um desencanto com o que a política significa – reflete.
Neste divã eleitoral, os ecos do desencanto ainda são imprecisos. Autor do livro O Brasil entre o presente e o futuro (Mauad, 2015), Domingues considera cedo para prever o que vai acontecer nas eleições de 2018.
– O sistema político deve estar ainda mais desestruturado, mas é uma eleição que conta muito. Não dá para fazer uma projeção simplista, porque a disputa presidencial é sempre uma coisa que mobiliza muito o eleitor, bota em questão o conjunto de sua vida – pondera.
Se, por um lado, há uma tendência de consolidação de forças mais conservadoras em curso, por outro, o cenário ainda deve ser bastante impactado pelos desdobramentos da Operação Lava-Jato. Quem serão os próximos atingidos? A resposta será crucial para determinar a nova correlação de forças.
– Para o PSDB foi bom num primeiro momento, mas tem que ver o que vai acontecer: se Serra, Aécio e Alckmin forem realmente atingidos por denúncias mais graves, também o PSDB pode acabar numa situação delicada. A esquerda está muito destruída, vai ter que se reinventar, e temos um centro mais moderno e democrático, que a Marina e a Rede poderiam representar, mas que está com muita dificuldade de emergir. Para o eleitor, está tudo meio esquisito. A esquerda ficou com uma cara ruim, mas não é uma coisa definitiva. Isso pode ser revertido – diz.