
Em uma sala no 8º andar de um prédio comercial na Rua Marechal Deodoro, no centro de Curitiba, Deltan Dallagnol, 37 anos, coordena as investigações da Lava-Jato no Ministério Público Federal (MPF). Há três anos, abandonou o seu gabinete no 14º piso do edifício da Procuradoria da República no Paraná e mudou-se para acomodações mais estreitas.
Desde o avanço da mais profunda investigação sobre corrupção no país, a falta de espaço tornou-se um inconveniente constante. Inicialmente instalados no escritório do coordenador, servidores destacados para a operação agora ocupam um andar inteiro alugado no prédio em frente à Procuradoria. Na porta, um detector de metais revela que não se trata de um local qualquer.
No endereço, 50 pessoas trabalham para desvelar casos de corrupção que envolvem políticos e empresários poderosos. Assessores acomodam-se diante de pilhas de processos e computadores. Entre as mesas, nem sempre há espaço para que uma pessoa passe. Sequer procuradores livram-se do aperto. São 11, divididos em três salas.
– Está bem entupido mesmo – admite Dallagnol.
Leia mais:
Conheça as fases da Operação Lava-Jato
Moro manda prender dois condenados em segunda instância
Gilmar Mendes suspende execução de sentença de condenado em segunda instância
Na tarde da última quinta-feira (24), o procurador recebeu ZH para uma entrevista sobre o futuro da Lava-Jato, seus desdobramentos e críticas. A conversa ocorreu na única sala de reuniões da força-tarefa, onde foram seladas nove em cada 10 delações da operação.
O ambiente deixa transparecer o improviso. Ao redor de uma mesa de madeira, cadeiras de diversas cores e modelos compõem o local por onde passaram delatores e seus advogados. Nas paredes, apenas um quadro com a pintura de uma rua cercada de carros.
Em tom de pregação, Dallagnol defendeu a urgência do combate à corrupção. Durante uma hora e meia, suas respostas mostraram a preocupação que confere ao seu discurso.
O procurador pausa antes de responder e, por vezes, interrompe o que dizia para reformular uma frase. Também mostrou-se metódico. Em folhas de ofício, anotou tópicos antes de desenvolver argumentos e elaborou esquemas para estabelecer sua linha de raciocínio.
Ao fim, revelou que o Ministério Público avalia o aluguel de um novo espaço no edifício. Sinal de que, por ora, a Lava-Jato está longe do fim.
A Lava-Jato completou três anos, chegou a sua 45ª fase, realizou mais de 170 prisões, acusou mais de 280 políticos, empresários e operadores. Até onde vai a operação?
A operação realizou o diagnóstico de um sistema político apodrecido, mas não basta ir ao médico e descobrir uma doença. É preciso uma recomendação de tratamento e segui-la. Esperamos que a Lava-Jato seja o primeiro de vários passos que precisam ser dados para diminuirmos a corrupção no país. Isso depende de como a sociedade se comportará. É uma caminhada necessária, mas que enfrentará obstáculos. Lutas contra injustiças históricas, tradicionalmente, enfrentam resistência, e a sociedade não pode desistir quando tem em frente as primeiras derrotas. É preciso perseverança. Entre os vários passos que a sociedade brasileira precisa dar, está a renovação política, com representantes alinhados com o anseio da sociedade contra a corrupção.
Na prática, a Lava-Jato terá um fim?
A força-tarefa continuará investigando enquanto existirem fatos a serem apurados. O fim da Lava-Jato é imprevisível porque as investigações são dinâmicas. Ainda que estivéssemos perto de um desfecho, bastaria que uma pessoa revelasse novas linhas de investigação para que as apurações continuassem. Hoje, mais do que o avanço da Lava-Jato, há uma multiplicação da Lava-Jato como atitude. Antes, muitas investigações contra pessoas poderosas em nada resultaram, o que frustra as pessoas e alimenta a desesperança. Quando a Lava-Jato mostra resultados, cria-se a crença de que é possível alcançar resultados no sistema de Justiça. O sistema é feito para não funcionar, mas é possível vencer a burocracia. Para alguns, o grande mérito da Lava-Jato é quebrar a barreira das nulidades pela primeira vez. Tradicionalmente, investigações contra grandes corruptos acabavam em alegações, acolhidas pelos tribunais, de supostas irregularidades nas investigações. Hoje, há um ambiente mais favorável para o combate à corrupção. Isso tende a gerar uma multiplicação de fases da Lava-Jato e o surgimento de "filhotes" desmembrados da operação ou oriundos de uma nova postura.
Há articulações políticas para esvaziar a Lava-Jato, como o enxugamento de verbas e pessoal no grupo de trabalho da Polícia Federal em Curitiba. O futuro das investigações está comprometido?
Com certeza, a Lava-Jato pode ser comprometida. Existem tentativas mal intencionadas para esvaziar a operação. Há ataques contra as instituições, que buscam colocá-las de joelhos e enfraquecê-las, como o sufocamento da PF e a lei de abuso de autoridade. Também existem ataques contra os instrumentos utilizados pela instituição, como o projeto de lei que busca mudar o modo como funcionam as delações, e ataques que buscam esvaziar as punições. A Lava-Jato pune pessoas que têm as leis nas mãos. Pessoas que têm as leis nas mãos permitirão mudanças para punir a si mesmas? Existe um instinto de sobrevivência natural de todo ser humano. Hoje, "eles" não aplicam essas mudanças em autobenefício porque a opinião pública protege o caso. Mas, com o passar do tempo, as pessoas se anestesiam e a poeira baixa.
O senhor teme que a população abandone a Lava-Jato?
Tememos que ocorra um esfriamento. A sociedade ficou morna, mas não sabemos se decorre da polarização e da falta de soluções concretas. Se for isso, é um processo reversível. Hoje, muitas pessoas não tomam posição porque não enxergam solução. Vejo isso no processo contra Michel Temer. Não houve envolvimento e incentivo para que o Congresso autorizasse processar o presidente porque sabiam que, caso Temer fosse afastado, assumiria Rodrigo Maia, que também é investigado pela Lava-Jato. As pessoas frustram-se com as solturas pelo STF, o foro privilegiado, a reforma política e a rejeição à autorização para processar o presidente por corrupção. Precisamos que as pessoas não deixem a sua compaixão esfriar. Não podemos passar a achar normal o que é anormal. Estamos diante de uma oportunidade histórica de mudança. Agora, se nos anestesiarmos, não vamos a lugar algum. Precisamos transformar o banhado da indignação e da reclamação em rios que nos conduzam a algum lugar.
A Lava-Jato revelou a espúria relação entre políticos e empresários no país, que se resume ao pagamento de caixa 2 ou propina em troca de benefícios. Hoje, a Câmara discute uma reforma política que inclui um bilionário financiamento público de campanha. É a solução?
A Lava-Jato revelou um sistema político apodrecido, que coloca em posições chave de órgãos públicos pessoas que buscam, na sua relação com empresas, encher os bolsos de dinheiro e financiar caras campanhas eleitorais. O dinheiro manipula e pode servir para campanhas hollywoodianas que fazem um candidato parecer o melhor do mundo simplesmente porque tem recursos. Isso gera um efeito pernicioso. Quando se tem 500 mil candidatos, como na última eleição, quem vai despontar e ser eleito será aquele que aparecer mais, quem aparece mais gasta mais e quem gasta mais arrecadas mais. Há uma espécie de seleção natural em que só os corruptos são eleitos, e a sociedade fica agrilhoada à corrupção. Hoje, existe um fundo público de R$ 800 milhões. A discussão sobre ampliar esse fundo ou reabrir ao financiamento privado é legítima, mas, antes, deveria ser discutida uma maneira de baratear as campanhas para que não se tornem instrumentos de manipulação do eleitor. Discute-se ampliar o dinheiro público investido em eleições em época de crise fiscal, quando falta dinheiro para a sociedade e se aumentam tributos. No orçamento da economia familiar, quando ocorre um corte, primeiro se pensa em tornar o modo de vida mais barato. É o processo natural. Mas isso interessa aos políticos?
Recentemente, o senhor apareceu em um vídeo, divulgado nas redes sociais, criticando a proposta de reforma política discutida no Congresso. Qual seria o sistema político ideal para o país?
Não existe uma resposta única, mas várias alternativas que atenderiam ao desincentivo à corrupção. Está acontecendo o contrário. É necessário reduzir os custos das campanhas eleitorais. O dinheiro desempenha um papel muito forte, manipulando a opinião pública. A reforma também pode estar associada à redução no número de candidatos e na busca de um modo conjugado entre os sistemas proporcional e distrital, que permite que pessoas destacadas em comunidades sejam eleitas sem precisar gastar recursos em todo Estado. Não estou dizendo que o sistema distrital é melhor – o proporcional também tem vantagens, como a representação de minorias. Mas, do modo como existe, incentiva grandes gastos. Outro ponto é a redução no número de partidos. O grande número de siglas estimula legendas de aluguel, que surgem só para receber recursos do fundo eleitoral e tempo de televisão – muitas vezes, negociados a preço de ouro. O número de partidos também dificulta a governabilidade, escambando, como vimos no mensalão, a compra de apoio eleitoral por meio do pagamento de mesadas, ou na compra de apoio político por meio da aceitação de pessoas para assumirem cargos públicos para arrecadar propinas, como revelou a Lava-Jato.
Há críticas de que a Lava-Jato firmou acordos de delação premiada em excesso – são mais de 150. O senhor acredita que o uso indiscriminado compromete o instrumento?
Não há uso indiscriminado. Quando existem crimes muito difíceis de serem descobertos e comprovados, como a corrupção, se instrumentos como esse não forem usados, simplesmente não se saberá que aconteceram e ninguém será responsabilizado. É o que acontecia antes da Lava-Jato. Não por má vontade das instituições, mas pelas dificuldades de investigação e comprovação desses crimes. Na Lava-Jato, só aconteceu em razão dos acordos de colaboração. Nunca são pontos de chegada de uma investigação, mas ótimos pontos de partida. Os acordos de colaboração premiada são essenciais para a investigação da macrocorrupção e necessariamente envolvem a concessão de benefícios ao réu para que a sociedade tenha benefícios maiores. Troca-se um pedaço da punição de alguém pela punição de muitas pessoas e a recuperação de grandes valores. A proporção de colaboradores na Lava-Jato é pequena. Na Odebrecht, foram 78 colaboradores e 280 acusados. É um colaborador para um conjunto de cerca de quatro réus. É uma ótima proporção.
Entre as principais críticas à operação, está a de que a Lava-Jato é seletiva, priorizando denúncias contra petistas e deixando de lado acusações contra tucanos, por exemplo.
Essa crítica está ultrapassada. Depois de Eduardo Cunha ir para a prisão e o MPF pedir a prisão de Aécio Neves e acusar criminalmente o presidente Temer... Essa crítica não tem como se sustentar. Nem mesmo como teoria conspiratória. A investigação se desenvolveu mais rapidamente pelo PT, PP e PMDB porque os cargos na Petrobras eram ocupados mediante indicação do partido no poder, e o partido no poder, desde 2003, era o PT. Hoje, avançou para mais de 25 partidos. Existe uma estratégia de acusar a Lava-Jato de supostas irregularidades para diminuir a sua credibilidade, abrindo uma brecha no escudo da opinião pública que a protege e permitindo que o sistema político passe por cima dela.
Os advogados de Lula insistem na tese de que a investida contra o ex-presidente representa uma perseguição. O próprio petista lhe chamou de "moleque" e disse que o senhor nada conhece de política.
Quando existem investigações consistentes, provas fortes e crimes graves, é natural que os investigados e réus ataquem a credibilidade dos investigadores e da investigação. Não ocorreu somente no caso de Lula, mas praticamente em todos os que envolveram pessoas poderosas. Faz parte da estratégia de defesa. Quando dizem que o grupo de procuradores é formado por moleques, tentam criar uma pecha de imaturidade. Quando apontam a fé das pessoas envolvidas na investigação, buscam criar uma ideia de irracionalidade. É uma acusação que não preocupa porque, sendo bem franco, não atinge.
Na apresentação da denúncia contra Lula, o Power Point com organogramas que colocavam o ex-presidente no centro dos desvios da Petrobras repercutiu no país e tornou-se motivo de piada. O senhor se arrepende da exposição dos slides?
Naquele momento, como em várias outras entrevistas coletivas sobre acusações da Lava-Jato, houve uma expressão do compromisso do MPF em prestar contas com a sociedade. Foi uma oportunidade de apresentar informações e provas, que, depois, acabaram sendo reconhecidas procedentes na sentença. Repetiria a entrevista coletiva, mas com algumas mudanças para evitar margem para interpretações equivocadas. Talvez mudaria um pouco a forma de apresentação gráfica e o tempo dedicado a cada assunto. Nosso compromisso é de absoluta transparência com as pessoas e levar informações de modo claro. Sem o apoio da sociedade, em casos envolvendo pessoas poderosas, não vamos a lugar algum.
No mesmo dia em que o juiz Sergio Moro determinou a prisão de dois condenados em segunda instância pela Lava-Jato, o ministro do STF Gilmar Mendes impediu a prisão de outro réu condenado em segunda instância. De que forma condutas como a de Gilmar Mendes interferem no combate à impunidade?
A decisão do ministro Gilmar Mendes é um desastre para a Lava-Jato e para a Justiça no nosso país. Existiam, na operação, prisões preventivas, excepcionais antes do final do processo. Ontem (na última quarta-feira, dia 23), pela primeira vez, foram emitidos mandados de prisão em decorrência da confirmação da condenação em segunda instância. Em 2016, o STF permitiu que réus em processos criminais sejam presos depois de confirmada a condenação em segunda instância. Agora, o STF está revendo esse entendimento por meio da mudança de voto de Gilmar Mendes. Na prática, postergar a prisão para decisão em terceira instância é dar salvo-conduto para que pessoas poderosas continuem cometendo crimes impunemente.
O senhor ingressou no MPF amparado por uma decisão judicial porque não possuía o requisito de dois anos de formatura. A Corregedoria Nacional do Ministério Público instaurou um procedimento para investigar a comercialização de palestras pelo senhor – hoje, arquivado. Esses episódios envolvendo a sua conduta ética atrapalham o seu trabalho na Lava-Jato?
Não me preocupam, porque são questionamentos ridículos em um contexto de guerra de comunicação. Todos os dias inventam ou desvirtuam fatos sobre mim, sobre o juiz Sergio Moro e sobre outras pessoas envolvidas. Não tem como processar os bandidos mais poderosos e esperar que não haja reação. Eu me formei em 2002 e imediatamente fiz concurso para três carreiras (MP do Paraná, Judiciário do Paraná e MPF). Fui aprovado em primeira, segunda e décima colocação. Dos três, o único que exigia tempo de formatura para posse era o do MPF. Era uma exigência, que, no entendimento de vários tribunais, contrariava a Constituição porque restringia o acesso a cargo público de uma maneira desarrazoada. Vários tribunais emitiram decisões para diversos candidatos – dentre os quais, eu. Não ganhei somente uma liminar, mas uma sentença de mérito. A União apelou para o tribunal e, quando foi ser analisado, já havia completado os dois anos de formado. O tribunal entendeu que o questionamento não fazia mais sentido, consolidando minha situação no MPF. Ou seja, algo plenamente regular e legal. Tenho feito palestras com o objetivo de conscientizar a população sobre o problema causado pela corrupção e como a sociedade pode reagir. Até o final da campanha das 10 medidas contra a corrupção, fiz palestras gratuitas. Recusei mesmo quando queriam pagar, porque era uma campanha institucional. A partir de 2016, com o fim da campanha, fiz cerca de 12 palestras remuneradas e não recebi R$ 1. Todos recursos foram destinados, sem passar pela minha conta, para a construção de um hospital para crianças com câncer. Em 2017, também fiz algumas palestras remuneradas. Descontados 10%, reservei 90% para um fundo para contribuir com a questão da ética e do combate à corrupção. Não precisava sequer ter doado. Poderia ter cobrado esses valores e colocado no meu bolso. É o que duas corregedorias de órgãos autônomos decidiram. Decidi não gastar comigo porque quero que as pessoas acreditem que minha razão para lutar pela causa é a mesma que inspira cada cidadão. Se o preço a se pagar para se lutar por um país melhor são falsas acusações, pago com gosto.
Gastos com diárias tornaram-se um dos símbolos do descontrole no setor político. O MPF gastou R$ 2,2 milhões em diárias, entre 2015 e julho deste ano. Isso retira a credibilidade da Lava-Jato?
É uma besteira, não retira credibilidade alguma. É o custo de funcionamento da força-tarefa. Ao mesmo tempo em que gastou R$ 2 milhões com vários custos, incluindo deslocamentos, recuperou mais de R$ 10 bilhões. É absolutamente ridículo.
O senhor já foi convidado por algum partido para concorrer às eleições?
Recentemente, recebi convites para conhecer partidos. Educadamente, recusei.
Quais partidos?
Não vou expô-los. Recebi alguns convites para conhecer partidos. Ninguém disse que estava interessado na minha candidatura. Mas, para evitar más interpretações, recusei os convites de modo muito polido.
Em seu perfil no Twitter, o senhor descreve-se como um "seguidor de Jesus". De que maneira a sua religiosidade interfere na formação de suas convicções políticas?
Na Lava-Jato, atuamos com diferentes visões de mundo e seguimos estritamente a Constituição. O Estado é laico. A minha visão de mundo, que é uma cosmovisão cristã, faz-me perseverar. É uma virtude bíblica que busco desenvolver para buscar um Brasil melhor. Incentiva-me a servir à sociedade e exercer compaixão. Nossa luta contra a corrupção não é motivada pela punição dos corruptos, mas pelos rostos dos brasileiros inocentes punidos pelos desvios de verbas públicas.
O senhor lançou um livro sobre o combate à corrupção, escrito em primeira pessoa. Na capa, há uma foto sua. O seu rosto representa essa bandeira?
Vejo-me como um cidadão engajado nessa causa. Quando a editora quis colocar meu rosto na capa, resisti. Mas insistiram e cedi, considerando o mercado. Meu objetivo é atingir o maior número de pessoas para sensibilizar sobre a causa. O objetivo do livro é mostrar que a Lava-Jato, por si só, é insuficiente. Não é dizer que existem heróis na Lava-Jato, mas que essa visão está errada. Quando as pessoas nos veem como heróis, colocam-se como espectadores, esperando que resolvamos o problema. Teremos um novo Brasil à medida que cada pessoa decidir ser senhor do seu destino e o povo decidir escrever sua história. O livro busca conscientizar que podemos caminhar da indignação à transformação.