
Com quase 30 anos de polícia, o delegado Alberes Félix, que atua na cidade de Abreu e Lima, região metropolitana de Recife, ainda custa a acreditar nas cenas que viu na última semana.
Primeiro, um saqueador que carregou uma geladeira durante a greve da polícia telefonou para dizer que estava arrependido.
Depois da garantia de que não seria preso se devolvesse o bem, outros se encorajaram - ou foram pressionados a fazer o mesmo.
Mães levavam os filhos pelo braço para a delegacia: você vai devolver isso agora! Mulheres ameaçavam os maridos: eu vou sair de casa e só volto quando você entregar esta geladeira! Cabisbaixo, um ajudante de pedreiro apareceu acompanhado da filha de cinco anos e da mulher para restituir dois litros de detergente e quatro sacos de farinha láctea.
Até sexta-feira, mais de 300 bens saqueados haviam sido devolvidos - de farinha a dezenas de geladeiras, máquinas de lavar, televisões e até uma moto.
- A primeira surpresa foi na hora do saque, porque muitos trabalhadores, idosos e até mães levando crianças participaram. Depois parece que caíram na real. Houve uma contaminação de moralidade. Nunca vi esse fenômeno em canto nenhum do mundo - surpreende-se o delegado.
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O episódio voltou a provocar discussões sobre ética na sociedade brasileira. Mas a crise de valores está longe de ser uma exclusividade nossa. O dilema sobre como distinguir o que é certo e o que é errado se tornou mais complexo nesta época em que as regras parecem embaralhadas, em que os valores já não valem como antes. Referência mundial no tema, o professor da Universidade de Harvard Michael Sandel estará em Porto Alegre nesta segunda-feira, para conferência no Fronteiras do Pensamento. Em seu livro Justiça - O Que É Fazer a Coisa Certa, o filósofo político norte-americano utiliza uma série de exemplos para questionar nosso senso moral e instigar uma reflexão mais profunda sobre as bases de nossas crenças. É legítimo cobrar preços exorbitantes por água no meio de uma tragédia, por exemplo? É correto que empresas falidas paguem bônus a executivos com dinheiro advindo do socorro do governo? Quais os princípios que sustentam cada decisão?
"Para saber se uma sociedade é justa, basta perguntar como ela distribui as coisas que valoriza - renda e riqueza, deveres e direitos poderes e oportunidades, cargos e honrarias. Uma sociedade justa distribui esses bens de maneira correta: ela dá a cada indivíduo o que lhe é devido. As perguntas difíceis começam quando indagamos o que é devido às pessoas e por quê", reflete.
Sandel não oferece respostas prontas. Ao estilo socrático, propõe mais perguntas do que soluções, sustentando que é preciso refletir coletivamente para encontrar saídas. Uma das certezas é que a busca pelo que é justo acompanha a humanidade desde sempre, sendo um dos temas clássicos da filosofia. No tempo em que a religião e o Estado totalitário ditavam leis, poderia parecer mais fácil determinar o que é certo mas, para o sociólogo Renato de Oliveira, doutor em Sociologia da Ética pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e assessor do Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung), essa percepção não passa de uma ilusão, porque maior normatização não necessariamente significa maior senso ético.
- A ética sempre esteve em crise. Nunca tivemos uma sociedade integralmente voltada para o bem. Nunca existiu, e pelo menos no horizonte que é possível especularmos não vai existir - pondera.
Pela definição clássica de Kant, o homem seria racional na medida em que consegue escolher motivações de ação partilhadas por todos, o que levaria ao imperativo categórico, que orienta a cada um agir como se sua ação pudesse se tornar uma lei universal. Na prática, é bem mais complicado.
- A grande questão é que essa argumentação racional, justamente porque é racional, não é baseada em nenhuma norma empírica. A ética não se resume a nenhum valor instituído pela sociedade, sempre pretende ir além, porque seu compromisso é com a liberdade. Já houve momentos e sociedades em que o individualismo era legítimo, como por exemplo na Inglaterra Puritana. O individualismo era baseado na crença de que o indivíduo humano é dotado de razão por isso é capaz de viver voltado para o bem. Mas hoje o individualismo perdeu essa noção, foi colonizado pelo individualismo econômico e virou um egoísmo vazio. Não tem como encontrar sentido nisso. Hoje a condição para o sujeito se manter individualista é o cinismo - analisa.
Num cenário de verdades provisórias, com o culto ao efêmero nas sociedades contemporâneas, como os cidadãos decidem o que é certo? Para o psicólogo Yves de La Taille, professor da USP e especializado em personalidade ética e psicologia da moral, os conceitos essenciais não são tão dependentes de épocas. Prova disso é que justiça, generosidade e coragem continuam sendo admiradas. As pessoas não deixariam de saber como agir, mas passariam a relativizar as regras, numa espécie de "eclipse do dever".
- Se formos pensar no que é certo ou errado há muita semelhança em 50 anos. Todo mundo diz "o certo seria, porém...". Não é o problema de ausência ou presença de valores, é uma questão de força, de enfraquecimento do senso moral. Nesse tempo em que tudo é fragmentado, a moral se torna quase um luxo, porque pressupõe conservação e nesse mundo nada se conserva. O valor tem que ser introjetado, senão se torna fraco, e a possibilidade de transgressão aumenta - argumenta La Taille, autor, entre outros, de Formação Ética: do Tédio ao Respeito de Si (Artmed, 2009).
Na ânsia por respostas, cresce a pressão social por maior controle social - uma saída vista como regressão por quem estuda ética.
- O que precisamos é debater problemas morais, estimular políticas públicas, porque isso não é espontâneo. É como ensinar a nadar: se aprende mesmo com a água, mas o professor pode dar dicas - propõe La Taille.
Na sociedade pós-moralista, como define o francês Gilles Lipovetsky, em que a busca pelo prazer suplantou o peso do dever, a equação ética também é uma questão de escolha.