
* Doutor em Filosofia, Professor da Escola de Direito da Unisinos
A justiça costuma ser abordada por exemplos de casos extremos, nos quais uma decisão implica, por exemplo, a vida ou a morte de um ser humano. No entanto, a justiça também está presente em pequenas decisões do nosso dia a dia. Vamos imaginar uma mãe que precisa cortar o bolo para as crianças de sua família. Qual critério ela deve usar para uma divisão igualitária? A mãe deveria cortar fatias rigorosamente iguais para as crianças, sem priorizar ninguém, sejam os seus próprios filhos, sejam os seus sobrinhos? E, se priorizasse o seu filho ao invés dos sobrinhos, estaria ela sendo justa? Os maiores não deveriam receber um pedaço maior, visto que têm mais apetite que os pequenos? A resposta a essas perguntas não é simples e não pode ser reduzida a uma igualdade absoluta e ao recorte milimétrico das fatias do bolo. Em muitas ocasiões, o mais justo não seria promover algum tipo de diferenciação justamente para preservar a igualdade? No caso do bolo, algumas crianças poderiam merecer mais do que as outras - por que não? Várias são as razões que justificam uma discriminação justa.
A divisão do bolo remete à igualdade que regula a relação entre o Estado e os seus cidadãos, ao, por exemplo, distribuir cargos públicos, bens e honrarias. Desde Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), a questão da distribuição com igualdade esteve atrelada ao mérito de cada homem para justificar a distribuição equânime entre os cidadãos da pólis, no sentido de que deve ser dado a cada um o que é seu por direito. No ato de distribuir, os governantes deveriam tratar diferentemente cada cidadão, pois aquele que faz mais e melhor para a cidade merece mais do que os outros. Trata-se, pois, de uma igualdade relativa ao mérito de cada um.
Diante da Copa do Mundo, poderíamos indagar sobre os jogadores que gostaríamos de ver convocados para a Seleção Brasileira. Se o Estado fosse o técnico da Seleção, que critérios ele deveria adotar para a convocação? Seria o caso de escolhermos os mais esforçados? Se assim fosse, correríamos o risco de termos como titular da Seleção um jogador da várzea que, embora não jogasse tão bem futebol, fosse muito dedicado, mais até do que muito jogador profissional. Nesse caso, todos estaríamos com Aristóteles ao afirmar que gostaríamos de ver os melhores jogadores no time. Esses exemplos nos levam a concluir que o conceito de justiça provoca sempre discriminações e está vinculado ao mérito de cada indivíduo. Mas como justificar essa discriminação, pois não estaríamos diante de uma nova forma de injustiça?
O debate sobre a distribuição da coisa pública com base na meritocracia ganhou novos contornos com as políticas de cotas afirmativas para afrodescendentes, pessoas de baixa renda e pessoas com necessidades especiais. Para tentar justificar esse tipo de diferenciação, John Rawls (1921-2002) convida-nos a imaginar uma situação anterior à sociedade, na qual ninguém conhece ainda o seu lugar nem a sua posição social. Antes de ingressarem nas instituições, escolheríamos, às cegas, os princípios de justiça que gostaríamos de ver regulando a vida em sociedade. Sob um véu de ignorância, ninguém sabe o que será no mundo; ignora-se a cor da pele, a sexualidade, o gênero, a condição econômica; não se sabe se nascerá com saúde ou se será uma pessoa com necessidades especiais ao ponto de carecer do auxílio de terceiros para fazer coisas básicas da vida. A partir da imparcialidade do véu de ignorância, Rawls demonstra que é possível relacionar justiça com diferença, pois todos querem a igualdade absoluta entre as partes, mas também conseguem perceber a necessidade de se corrigir eventuais distorções e assimetrias por meio de diferenciações.
As propostas de Aristóteles e Rawls nos fazem refletir sobre o problema da justiça. Contudo, nenhuma delas é completamente satisfatória e a justificação do conceito de justiça ainda encontra-se em aberto, provocando mais dúvidas do que soluções, como bem mostra Michael Sandel (que estará em Porto Alegre nesta segunda-feira) ao discutir problemas contemporâneos da justiça a partir da tradição filosófica. Nesse sentido, o projeto aristotélico é limitado e excludente ao priorizar apenas os melhores, excluindo, assim, os mais fracos e vulneráveis; o projeto de Rawls também apresenta problemas, principalmente porque lança mão de uma hipótese ideal para negociarmos os princípios que queremos para nossa sociedade. A justiça é uma virtude atrelada aos conflitos da vida e ao caso concreto, uma virtude que não pode ser compreendida com hipóteses e elucubrações fora do mundo, mas, sim, a partir do contexto no qual todos nós, enquanto seres humanos, estamos inseridos.