
Deitada de pernas abertas sobre uma mesa, uma artista teve a vagina costurada por duas colegas. A performance foi apresentada na festa Xereca Satânik, realizada em maio na Universidade Federal Fluminense, no que seria um protesto contra estupros na região.
Na Marcha das Vadias no Rio de Janeiro, enquanto mulheres saíam desnudas para defender causas como o direito à liberdade de seus corpos, um grupo quebrou imagens sacras e chegou a esfregá-las nas partes íntimas, durante a visita do papa Francisco ao Brasil, no ano passado.
No Rio Grande do Sul, em maio deste ano, a banda Putinhas Aborteiras causou controvérsia ao provocar a Igreja e o machismo, em uma apresentação na TVE, com versos como: "Se o papa fosse mulher o aborto seria legal", "Ei, Papa, levanta o teu vestido, quem sabe aí embaixo não está o Amarildo".
Embora diferentes, a festa Xereca Satânik, a Marcha das Vadias e o grupo Putinhas Aborteiras têm mais em comum do que as polêmicas que suscitam. Cada uma a seu modo, expressam a nova cara no feminismo. É uma face provocadora. Em vez de se apegar ao politicamente correto, as ativistas passaram a fazer o contrário: se apropriam dos ataques que recebem, apostando na subversão como estratégia de combate. Chocar é palavra de ordem. E essa é uma tendência global, na qual se inserem as manifestações com topless lideradas pela organização internacional Femen e a prisão de integrantes da banda Pussy Riot, na Rússia, por protesto político em uma igreja ortodoxa.
- Primeiro vem o choque. Mas depois isso faz com que as pessoas reflitam, obriga a parar para pensar. Eu particularmente sou contra esse tipo de ato mais violento, como pessoa. Mas nunca algo chamou tanto a atenção dos brasileiros sobre o clitóris como a festa Xereca Satânica. Vários movimentos já fizeram isso de se apropriar de coisas que são utilizadas para oprimir. Se a Marcha das Vadias, por exemplo, se chamasse "Marcha das Mulheres", talvez ninguém fosse prestar atenção - compara uma das organizadoras da Marcha das Vadias em Porto Alegre, a publicitária Maria Fernanda Geruntho Salaverry, 28 anos.
O crescimento da Marcha das Vadias é um dos indícios de que a estratégia atrai simpatizantes. Realizada em 2011, a primeira edição em Porto Alegre reuniu 400 pessoas. Na quarta edição, em abril deste ano, foram quase 4 mil, na contagem dos organizadores. O movimento surgiu no Canadá, em resposta a um policial que afirmou que as mulheres deveriam evitar vestir-se como "vadias" para não serem estupradas, após uma série de estupros. Indignadas, as mulheres reagiram, criando a marcha que se espalhou pelo mundo.
- O movimento feminista estava meio debilitado nas últimas duas décadas, agora as pessoas que não são o público tradicional voltaram ao debate. Minha vó, por exemplo, era contra a marcha com peitos de fora no início. Depois entendeu e começou a dizer: "isso aí, meninas, vocês têm o direito de usarem o que quiserem e não serem atacadas" - conta Maria Fernanda.
Para a cientista política Céli Pinto, professora da UFRGS e autora do livro Uma História do Feminismo no Brasil, as manifestações recentes são uma demonstração de que o feminismo está rejuvenescendo, com holofotes amplificados pela internet. Ela descreve três ondas do movimento: a primeira seria aquela em que as mulheres lutavam por direitos políticos, como o voto, conquistado no Brasil na década de 1930. A segunda seria a luta por direitos iguais, como no trabalho e na sexualidade, que ganhou força a partir da década de 1970. A terceira seria a atual, por uma militância mais atuante na internet e pelo protagonismo jovem.
Na avaliação da pesquisadora, as reações às manifestações recentes, como a demissão de funcionários da TVE após o vazamento do vídeo com a apresentação das Putinhas Aborteiras, indicam falta de abertura para discutir o tema.
- Não há nenhuma violência no que elas estão fazendo. Há uma falsa moralidade na sexualidade, as mulheres ainda são vistas como putas ou santas. O Brasil é infantilizado em relação ao aborto, com a ideia de que não se pode discutir. E isso é um problema seríssimo. A mulher que morre é a pobre, vira questão de classe - critica Céli.
Ao seguir a lógica das redes, o movimento feminista mimetiza suas características: ao mesmo tempo em que está mais disperso, também é capaz de provocar muito barulho. Um exemplo foi o protesto online #EuNãoMereçoSerEstuprada, criado pela ativista e escritora Nana Queiroz, 28 anos. Quando decidiu tirar uma foto de topless diante do Congresso com a frase escrita nos braços, em resposta à pesquisa do Ipea que apontava que 65% dos entrevistados consideravam que mulheres de roupa curta mereciam ser estupradas (índice depois corrigido para 26%), Nana lançou a ideia para 10 amigas, sugerindo que avisassem outras. No dia seguinte, ao acordar, descobriu que já havia 45 mil pessoas engajadas na campanha. Na sua avaliação, todas as manifestações feministas que ecoaram recentemente têm em comum um desafio aos conceitos morais em relação ao corpo das mulheres.
- As mulheres mais revolucionárias concluíram que não dá para dialogar com as forças conservadoras, têm que enfrentar. Ah, acham que eu sou vadia? Então eu sou vadia. Diante do resultado da pesquisa do Ipea, aquilo não merecia diálogo. Você não dialoga com alguém que diz que estuprar é ok. Eu quebrei uma lei, fui para a frente do Congresso, estava morrendo de medo de ser presa. Mas o corpo é meu. É um objeto político, não sexual - analisa Nana, que conseguiu apoio até da presidente da República, Dilma Rousseff, mas também recebeu contra-ataques violentos, como ameaças de estupro pela rede.
Apesar de estarem todos ancorados na linha combativa, os movimentos feministas estão longe da unidade, como bem ilustra a trajetória da paulista Sara Winter, 21 anos, que se tornou um dos ícones feministas no país. Depois de fundar no Brasil uma célula do Femen, Sara teve um rompimento ruidoso com as ucranianas que lideram a organização e hoje acusa as antigas companheiras de racistas, homofóbicas e até "gordofóbicas".
- Só se veem meninas brancas e magras nos protestos, gordinhas não têm vez. Nos protestos que a gente fazia apareciam muitas gordas, e elas diziam que "não pegava bem". Quando disse que não queria mais fazer parte do Femen, ameaçaram destruir a minha vida, fizeram tudo para me desacreditar - diz Sara, que foi acusada de desvio de recursos e nega as acusações.
Os alvos de protesto também causam divergências. Entre os pedidos da Femen internacional estavam pichar o Cristo Redentor ou serrar com uma motosserra uma cruz no centro de São Paulo para chocar, algo que foi rechaçado pelo grupo brasileiro por ser considerado inapropriado. Ao romper com o Femen, Sara criou o Bastardxs. Apesar de ainda fazer manifestações com os seios à mostra e dizeres no corpo, Sara não concorda que tudo é válido. E critica a performance realizada na festa Xereca Satânik. Diz que chegou a chorar ao ver as imagens da costura da vagina, que lhe trouxeram recordações de um estupro que sofreu quando era garota de programa, por um cliente que não aceitava sua recusa ao sexo anal. Em resposta, cogita escrever uma carta aberta, assinada pelo Bastardxs e outros coletivos, manifestando essa posição.
- Não acho que isso seja positivo para o movimento feminista. O corpo é delas, têm direito de fazer o que quiserem, mas não podem ser tão egoístas. Não pensaram no que outras mulheres iriam pensar quando vissem a mutilação genital. É um tipo de feminismo egoísta - critica.
Já as Blogueiras Feministas, que reúnem em sua página textos de 70 mulheres, postaram em sua página um "Manifesto de Solidariedade às Xerecas Satânicas". A coordenadora do grupo, Bia Cardoso, lembra que as protagonistas da festa sequer disseram que são feministas, mas merecem apoio em nome da liberdade de expressão.
- Em todo movimento social há diferentes pensamentos. O Movimento Feminista não tem sindicato. Qualquer pessoa pode fazer o que quiser e dizer que é feminista. Se nem dentro de um partido político encontram coesão, imagina no feminismo - analisa.
Com o crescimento da bancada religiosa no Congresso, as feministas temem o aumento do conservadorismo, visto como um obstáculo para reivindicações como o direito ao aborto e o combate à violência contra a mulher.
- Temos 513 deputados, e o número de deputadas não chega a 10%. E dessas quantas são de uma linha progressista? Há muita gente querendo que a Bíblia substitua a Constituição. É paradoxal, porque temos cada vez mais mulheres no feminismo, mas temos uma barreira. Também há muitas brigas na internet de feminista contra feminista, muitas vezes não se vê avanço no debate - lamenta Lola Aranovich, professora da Universidade Federal do Ceará que é autora de um dos blogs feministas mais acessados do país, o Escreva Lola Escreva.
E até onde vai a estratégia do choque? Enquanto há teóricos que sustentam que estaríamos às portas do pós-feminismo, com a desconstrução do conceito de gênero, e outros vislumbram uma "quarta onda" feminista, Maria Fernanda Salaverry, da coordenação da Marcha das Vadias em Porto Alegre, acredita que o movimento caminha para um amadurecimento.
- O choque sistemático deixa de fazer efeito. A tendência é de que o objetivo deixe de ser chocar e passe a ser algo mais maduro, mais articulado e propositivo - prevê.
Saiba mais:
Queima de sutiãs, só que não
Uma das imagens clássicas do feminismo é a famosa queima de sutiãs, que na década de 1960 poderia chocar tanto ou mais do que a festa "Xereca Satânik" hoje. Mas a queima não chegou a acontecer no protesto que originou o termo. O ato reuniu 400 ativistas contra o concurso Miss América em 7 de setembro de 1968, nos Estados Unidos. Embora tenham colocado no chão sutiãs e outros acessórios do estereótipo feminino, as manifestantes não chegaram a queimá-los porque não tiveram permissão do Atlantic City Convention Hall, onde estavam. Manchetes que noticiaram o fato ajudaram a propagar a expressão "BraBurners" (queimadoras de sutiãs). E a atitude performática depois acabou inspirando outras mulheres a queimarem sutiãs pelo mundo.
Performances e provocações
Femen
Com sede na Ucrânia, o movimento feminista Femen foi fundado em 2008. A organização tornou-se notória por protestar em topless contra temas como o turismo sexual, racismo, homofobia e sexismo. Um documentário realizado em 2013 pela cineasta australiana Kitty Green aumentou a polêmica que ronda o grupo ao afirmar que um homem chamado Viktor Svyatsky, outrora tido como consultor do Femen, seria um dos reais criadores do movimento.
Marcha das Vadias
Surgiu em 2011 em Toronto, no Canadá. Foi uma resposta a uma fala do policial Michael Sanguinetti, que, depois de uma série de estupros no campus da universidade local, afirmou que as mulheres deveriam evitar vestir-se como "vadias" para não serem estupradas. Indignada, a comunidade universitária reagiu. Militantes de países como Estados Unidos, Argentina, Holanda e Brasil já reproduziram a marcha.
Pussy Riot
Em 2012, três integrantes da banda punk russa Pussy Riot foram presas e condenadas a dois anos de cadeia cada uma por "vandalismo, incitado por ódio religioso", depois de protesto contra o presidente Vladimir Putin na igreja ortodoxa mais importante da Rússia.
Eu Não Mereço Ser Estuprada
Depois de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelar que 65,1% dos entrevistados concordavam que mulheres que mostram o corpo "merecem ser atacadas" (índice depois corrigido pelo instituto para 26%), em março deste ano, as mulheres começaram a protestar divulgando fotos sem camisa e com a inscrição "Eu não mereço ser estuprada". Mais de 100 mil pessoas se engajaram na campanha, que recebeu apoio da presidente Dilma Rousseff.
Putinhas Aborteiras
Definindo-se como "anarcafeminista", o grupo Putinhas Aborteiras provocou polêmica em maio deste ano, depois de apresentação na TVE. Na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, a bancada do PP protocolou requerimento de moção de repúdio à emissora, alegando que a apresentação feriria "a moral e os bons costumes". Dois funcionários da TVE foram demitidos por vazar o conteúdo, que foi exibido de madrugada, na internet.
Xereca Satânik
A festa Xereca Satânik foi realizada por alunos do curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense, em programação de uma disciplina sobre "Corpo e resistência", em 28 de maio. Apesar do apoio da coordenação do curso, que afirmou que a performance (que incluiu a costura de uma vagina) pretendia protestar contra estupros, a universidade abriu sindicância e até a Polícia Federal foi acionada.