O mais recente número da revista Serrote, publicado em julho pelo Instituto Moreira Salles, traz um primoroso ensaio do crítico e pensador franco-americano George Steiner (1929). Trata-se de uma pequena obra-prima, O Silêncio dos Livros, texto publicado originalmente em 2005, em francês, e que agora é lindamente traduzido ao português e editado na companhia de belo trabalho visual de Iran do Espírito Santo.
O leitor que trava seu primeiro contato com o ensaísmo humanista e erudito de Steiner não poderia encontrar melhor porta de entrada: o texto visita alguns dos temas recorrentes nas reflexões do autor de A Morte da Tragédia, como a ascensão da cultura livresca e sua relação com as tradições orais que a precederam ou com as quais conviveu; a "presença real" do sentido nos textos que lemos (a despeito do alarde dos desconstrucionistas); e a cada vez mais sensível erosão no consenso cultural que formou aquilo que em outros tempos chamaríamos, como chamo aqui, com orgulho talvez irrepetível, de Cultura Ocidental.
Aos leitores usuais há ainda o privilégio de encontrar o dileto autor em grande forma, introduzindo uma hipótese nova, de fundo psicológico, sobre essa conditio dos homens do livro: nossa entrega total às forças da imaginação e da abstração intelectual, o alheamento que toma conta de quem ouve o grito do Rei Lear ou sofre com a sorte de Ofélia, indiferente aos que gritam e sofrem bem diante de nossos olhos, não seriam evidência paradoxal de que o cultivo e a prática das humanidades podem, por fim, desumanizar, afetando nossa sensibilidade para o real? Iniciantes ou iniciados, como se vê, podem incorporar o texto a sua dieta de grandes ideias, dessas ideias que ingressam na circulação de nossos pensamentos e tornam-se-nos vitais, como o sangue que não mais nos pode abandonar - talvez provando o paradoxo apontado por Steiner.
No arco histórico que Steiner vai desenhando para nos contar esse "silêncio dos livros" de que fala, e à parte sua nova hipótese, que espero intrigue o leitor, segue encantando-me com particular mistério a força do exemplo de Sócrates e o poder do diálogo. Esse grande mestre de Platão e de todo o Ocidente, figura que Steiner já examinara com brilho a título de par especular do Jesus de Nazaré, foi como que independente do texto escrito, do livro tal qual o conhecemos. Nas palavras de Steiner, o vivo pensamento de Sócrates é "irredutível a qualquer textualidade muda". Platão, cuja obra é nossa mais pujante fonte de informações sobre a vida e os ensinamentos de Sócrates, mostra-nos, no diálogo Fedro, um Sócrates insensível para com os poderes do discurso escrito: confiar na escrita é atitude de um espírito simplório, pois tal como os produtos da pintura nela parecem estar vivos, mas nada podem responder-nos se os indagarmos quanto ao que que quer que seja, assim também os discursos escritos nada podem nos responder, nada explicam, nada esclarecem quando os interrogamos, com eles buscando o diálogo. A esse silêncio do livro, Sócrates contrapõe o viço e a beleza de um outro discurso, o "discurso que é escrito, com conhecimento, na alma do ouvinte" - o discurso vivo, pronunciado no caloroso cenário do diálogo entre os homens.
Diante da perplexidade provocada por essas palavras de Sócrates, lembro da insistência de Steiner sobre nossa responsabilidade de responder ao texto escrito. Sinto isso a cada linha de cada um de seus livros. Ao contrário do que ocorre com as pinturas sem vida do exemplo de Sócrates, suas palavras são, para mim, como que uma nova encarnação de uma notável galeria de amigos. Lendo Steiner, de imediato inicia-se para mim o diálogo com o mestre e amigo Voltaire Schilling, que por primeira vez me apresentou a sua obra; lendo-o, ouço a voz mansa e pausada do amigo ausente Sérgio Fischer, que me presenteou com uma de suas obras-primas; lendo-o, ingresso no terreno vasto, belo e seguro da rica convivência e do contínuo diálogo que marcam ainda hoje a amizade com o Pedro Gonzaga, em que Steiner sempre se fez presente. Para mim, as palavras nos livros de Steiner não serão jamais as frias figuras incapazes de resposta, de reação, de diálogo. Antes, são o mágico veículo empregado pelos astuciosos amigos de ontem e de hoje para estarem sempre aqui comigo, em renovado e atencioso diálogo, escrito na minha alma de ouvinte.