Porto Alegre

A mágica do profano

Imaginário público leva celebridades falecidas ao limite entre mortais e imortais

Para professora de Oxford, repúdio social dirigido para os milhares de retratos tirados no velório de Eduardo Campos expressam indesejado encontro entre a superioridade do personagem e a inferioridade das coisas materiais

Augusto Cataldi / Fotos Públicas

* Cientista social, antropóloga e professora da Universidade de Oxford

No último Gre-Nal, os gaúchos - inclusive eu mesma - ficaram perplexos com a perversidade de alguns torcedores do Grêmio ao agredirem a memória de Fernandão, ídolo colorado. No domingo seguinte, a sociedade brasileira se comovia na mesma medida em que se espantava com a falta de etiqueta funeral das pessoas presentes no velório do presidenciável Eduardo Campos.

Diante desse estado das coisas, em que se observa a uma inserção da profanidade no ritual sagrado, fui desafiada pela Zero Hora a refletir sobre o tema da dessacralização da morte na sociedade contemporânea.

>>> Leia Mais: Por que a relação contemporânea com a morte passa pelo espetáculo

Eu começo minha reflexão pelo argumento de fim. Em ambos os casos, nós podemos dizer que houve rompimento ou extrapolação de códigos de comportamento moral vigentes em nossa cultura, mas não vejo a ausência do sagrado. Muito pelo contrário. As reações mundanas parecem-me proporcionais à própria sacralização das vítimas, que compartilharam o fato de uma juventude promissora brutalmente interrompida em um trágico em acidente aéreo.

É bem verdade que a perda da magia, a secularização, a laicidade do Estado, o progresso da ciência e a racionalização das práticas econômicas são alguns dos pilares da modernidade ocidental que constituem aquilo que Max Weber chamou de "desencantamento do mundo". Um dos seus mais brilhantes críticos, o sociólogo Flávio Pierucci, diria que o conceito não necessariamente remete à ideia de perda de algo, mas a um paradigma. Diversos outros pensadores irão apontar que a visão linear e evolucionista da magia à ciência - que preponderou na Antropologia na passagem do século 19 ao 20 - é um projeto que nunca se concretizou no Ocidente.

A ideia de dessacralização é uma armadilha que nós mesmos armamos e caímos por meio de nosso paradigma dual ocidental - eternamente incompleto na modernidade à brasileira, que de dual não tem nada. O binarismo não apenas polariza e isola as categorias de sagrado e profano, mas igualmente hierarquiza-as. No Ocidente, essas ideias já aparecem na obra de Santo Agostinho, do século 4º, tão atentamente analisadas pela antropóloga Diana Lima, que descreve o processo histórico que inferioriza a materialidade profana e ressalta a supremacia da imaterialidade espiritual.

Aí nós voltamos aos eventos que marcaram as mortes de Fernandão e Campos, os quais enganosamente podem ser compreendidos não apenas como dessacralizados, mas igualmente como marcadores de uma diferença entre o mundo terreno e o superior. O repúdio social dirigido para os milhares de retratos tirados do caixão expressariam perfeitamente o indesejado encontro da tão almejada superioridade espiritual com a inferioridade das coisas materiais.

Mas, na prática, as coisas não funcionam bem assim. O que a Antropologia tem mostrado nas últimas décadas é que esse dualismo não existe, tampouco a hierarquia. A questão é que, se ainda podemos manter essas categorias opostas como variáveis analíticas, isso só pode ser feito a partir de arranjo complexo no qual admitimos que existe sagrado no profano e profano no sagrado.

Em ambos os casos, é preciso reconhecer que estávamos diante de dois espetáculos de origem "profana", tão peculiares à cultura popular brasileira. Além disso, multidões encorajam o indivíduo a agir em "comportamento de manada" (que, em certa medida, é bastante covarde, pois nenhum torcedor isolado teria coragem para agredir a memória de Fernandão cara a cara com a viúva noutra situação). A postura do público no momento do luto expressa essa continuidade do calor das emoções do mundo pecaminoso e falível da política e do futebol.

As reações, contudo, não demonstram a desmagicização do mundo, mas nos revelam a magia presente na transição dos humanos em mártir da política ou em santo do futebol. Por mais que eu, Rosana, torcedora do Internacional, tenha sentido repúdio pelas agressões à morte de Fernandão, como antropóloga não posso deixar de pensar que as ofensas dirigidas a ele só demonstram o reconhecimento do time rival à existência de um semideus.

Parece-me que, se eu morrer hoje, ninguém vai querer fazer um selfie em meu caixão, tampouco multidões gritariam minha morte. Do espetáculo profano e mágico do futebol e da política, Campos e Fernandão hoje estão no limite entre mortais e imortais. E é isso que motiva a reação do público. Seja por imagens, seja por agressões verbais, há um processo de inserção de celebridades mundanas no plano do sagrado.

A propósito e por fim, neste fim de semana tem jogo. E eu, colorada, cientista, ateia e agnóstica, levarei minha vela ao Beira-Rio e a acenderei no santuário junto com outras tantas chamas acesas que não nos deixam esquecer. E eu vou pedir ao meu santo Fernandão, do fundo de minha fé e minha contradição existencial, que nos ajude a ganhar.

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