
* Professora de História do Brasil Republicano na Universidade Federal do Pampa
Rio de Janeiro, primeiras décadas do século 20. Uma série de reformas urbanas, que envolviam um remodelamento completo do centro histórico, transformavam a capital da recém instaurada República. Em meio à construção de muitos dos majestosos edifícios que ainda hoje chamam a atenção no centro da cidade, intensas agitações sociais ocorriam em função da retirada compulsória de populações pobres que habitavam a região. A Primeira República brasileira não deixava espaço para os populares, habitantes de cortiços, egressos da escravidão. Enquanto isso, os grandes escritores da época, como Olavo Bilac e Henrique Maximiano Coelho Netto, perambulavam pelos teatros e cafés da Rua do Ouvidor, em meio a acalorados debates literários ou discutindo as próximas eleições para a Academia Brasileira de Letras. As "modas europeias", especialmente as francesas, seduziam não só esses eminentes intelectuais, mas também boa parte de nossas elites.
Esse cenário, assim como a frenética e moderna São Paulo dos anos 1920 (abordada em Orfeu Extático na Metrópole), são alguns dos panos de fundo de importantes obras do historiador Nicolau Sevcenko, falecido no último dia 13. Com trabalhos fundamentais para quem se interessa pela história da cultura brasileira, Sevcenko foi responsável por uma obra variada e acessível, capaz, contudo, de abordar com profundidade importantes aspectos do nosso passado. Valendo-se, a fim de realizar suas pesquisas, de diversos tipos de fundos documentais, esse professor e pesquisador da Universidade de São Paulo contribuiu, ao longo de toda a sua carreira, para a divulgação e a popularização das histórias sobre a nossa cultura, inclusive publicando artigos em jornais, como a Folha de S. Paulo, e revistas, como a Carta Capital.
Seu livro Literatura como Missão, que completará 30 anos em 2015 (foi publicado pela primeira vez em 1985), permanece indispensável. Nele, Euclides da Cunha e Lima Barreto se encontram no cenário descrito acima, do Rio de Janeiro da Belle-Époque, e ganham a vida como escritores engajados, incapazes de abandonar a reflexão acerca da realidade circundante em favor da atraente vida mundana e cosmopolita que marcava o período. Ao contrário de boa parte da intelectualidade da época, argumenta o autor, tanto Euclides da Cunha quanto Lima Barreto não se furtavam a uma caracterização crítica da sociedade em suas obras literárias.
As múltiplas faces dos processos de modernização das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, em que conviviam o êxtase em torno do novo, a expectativa diante de novas tecnologias e da velocidade, e uma série de conflitos sociais, também permeiam sua obra. Um bom exemplo é o livro A Revolta da Vacina, publicado em 1983, mas que recebeu nova edição em 2010: nele, o autor analisa os conflitos em torno do episódio de implementação, no ano de 1904, da vacinação obrigatória contra a varíola na cidade do Rio de Janeiro. A vacina obrigatória estava ligada a um projeto ainda nascente de cidade moderna que incluía certos preceitos de saúde pública. Se, por um lado, se dispunha a reduzir as perdas provocadas por uma epidemia de varíola que assolava a cidade, por outro desconsiderava as crenças e valores de uma população que nutria sérias desconfianças a respeito da vacinação. Até mesmo Rui Barbosa, um dos mais representativos políticos brasileiros do período, reconhecido até nossos dias por sua vasta ilustração, declarou temer a contaminação com o vírus por meio da própria vacina. Diante de tais suspeitas, a população do Rio de Janeiro opôs-se em massa à vacinação imposta pelos poderes públicos, o que causou graves agitações envolvendo, principalmente, povo e polícia. Foi com grande sensibilidade que Nicolau Sevcenko, de forma pioneira, ofereceu uma interpretação sobre esse episódio, sem deixar de considerar legítimas as motivações do povo sublevado.
Historiador perspicaz e narrador de texto agradável, Sevcenko circulou por temas eminentemente públicos, mas também foi organizador de uma obra de fôlego dedicada à história da vida privada no Brasil. Tratou de grandes cidades modernas, tecnológicas e europeizadas, mas não esqueceu de levar em consideração a cultura e as práticas das populações mais empobrecidas, de uma miséria que, quase sempre, é fruto justamente do progresso excludente. Pela qualidade, diversidade e alcance de sua obra, sua morte, sem dúvida, deixa uma inestimável lacuna na produção acadêmica de história no Brasil.