* Professor e tradutor. Escreve mensalmente no PrOA
No último dia 13 de setembro, o Reino Unido e todo o mundo civilizado receberam estarrecidos a notícia do brutal assassinato do britânico David Haines, que prestava ajuda humanitária na Síria e que fora capturado em 2013. Haines foi decapitado de forma bárbara pelo grupo terrorista muçulmano que atende pelo nome de Estado Islâmico, que divulgou vídeo com o registro da decapitação - gesto complementar às animalidades de praxe do grupo. Haines foi o terceiro ocidental a ser morto seguindo o mesmo modus operandi: em 19 de agosto, o jornalista americano James Foley teve o mesmo destino, inaugurando a prática da abjeção midiática do grupo, no que foi seguido por Steven Sotlof. Como que a acrescentar uma dose extra de horror a já tão grotesco cenário, o terrorista muçulmano que discursa contra o Ocidente, os Estados Unidos e Obama nos vídeos recebeu a alcunha de "Jihadi John" - seu acento, muito típico de certa região londrina, causou quase tanto espanto quanto seu abominável gesto.
As autoridades britânicas têm fortes indícios de que se trata de Abdel-Majed Abdel Bary, mais conhecido como o rapper L Jinny, que chegou a conhecer algum sucesso em sua carreira musical antes de optar por combater o "demônio ocidental" cortando cabeças de jornalistas no exercício de sua profissão. Após o choque inicial das notícias, revelou-se que aproximadamente 500 jihadistas britânicos já haviam se unido às forças do terrorismo na Síria e no Iraque, muitos dos quais estariam de volta ao país e constituiriam potencial ameaça terrorista doméstica. A situação, como se vê, é grave, e foi bem resumida em uma matéria da tradicional revista Spectator: "nos tornamos [os britânicos] os principais exportadores de jihadistas do Ocidente".
Como uma das mais longevas, estáveis e prósperas democracias do Ocidente tornou-se produtora e exportadora de jihadistas decapitadores de jornalistas? A questão é grave, e uma resposta adequada envolve análises políticas de fôlego. Suponho, contudo, que a boa resposta deva incluir um componente filosófico - digamos, da História das Ideias - se quisermos compreender o alcance maior do que o Reino Unido vem testemunhando.
A Inglaterra foi das primeiras nações do Ocidente a atacar seus delicados problemas raciais decorrentes do processo da imigração (especialmente de habitantes de suas ex-colônias) adotando políticas públicas de caráter multicultural. Durante governo do primeiro ministro trabalhista Harold Wilson (1964 - 1970), importantes medidas de combate à discriminação de imigrantes (uma grande quantidade deles muçulmanos) e de promoção da igualdade racial foram implementadas. Ocorre que, paralelamente a tais medidas de caráter igualitário, isto é, a promoção da igualdade legal e efetiva dos cidadãos britânicos e a extensão de direitos e garantias políticas aos imigrantes, criou-se um ambiente que privilegiava políticas e atitudes identitárias, ou seja, que visavam a preservar os valores e os costumes próprios das comunidades imigrantes. Era a época da "desconstrução" do Ocidente, do Homem Branco, da Cultura Europeia e de uma série de inimigos fantasiosos da nova doutrina da moda, o multiculturalismo, que ganharia força nas universidades, na política e na administração pública nas décadas seguintes. Ao longo das últimas décadas, o multiculturalismo britânico deu combate aberto e contínuo à ideia de que o imigrante devesse ser integrado, em pé de igualdade, ao conjunto da sociedade britânica, ideia vista como autoritária, eurocêntrica e puramente racista; buscava-se fazer do Reino Unido uma "comunidade de comunidades", em que nenhum valor, nenhum regime político e nenhuma prática ou costume se sobrepusesse a qualquer outro. Como se sabe, não há multiculturalismo sem relativismo moral.
O resultado desastroso dessa política faz-se sentir agora, quando em nome desse multiculturalismo pregadores muçulmanos radicais defendem a implementação da sharia, a lei islâmica, no país; quando até mesmo as universidades inglesas curvam-se a interesses identitários, aceitando a segregação de homens e mulheres por razões religiosas. Como disse um dos principais expoentes do trabalhismo britânico, Roy Jenkins, responsável por inúmeras reformas multiculturais dos anos sessenta, "imaginávamos que os valores de uma sociedade secular e democrática estavam assegurados". As cabeças decapitadas pelo jihadista britânico vieram lembrar-nos que não era bem assim.
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