
* Psicanalista, membro da APPOA
Aqueles que têm crianças por perto estão sempre encontrando novos personagens para povoar suas vidas. Os vários canais de TV dedicados às crianças oferecem hoje inúmeras histórias. É interessante perceber que alguns programas infantis não passam de uma única temporada, enquanto outros viram "febre". O que atesta que as crianças são seletivas. Diante de tantas opções, vira sucesso somente o que lhes produz sentido. Nessa linha, o fenômeno mais recente entre os pequenos é Peppa Pig. A série conta histórias de uma porquinha que tem por volta de cinco anos e vive numa família tradicional, com vovô, vovó, pai, mãe e um irmãozinho menor, George. É um programa composto por episódios de cinco minutos, sendo que cada história aborda um pequeno conflito ou cena do cotidiano infantil. Por exemplo: ter medo de tomar remédio ou não querer dividir um brinquedo.
Leia todas as notícias do caderno Proa
Nas relações com a família e com amiguinhos de sua idade, Peppa expressa uma série de características das crianças pequenas. É egocêntrica, implicante, mandona e ciumenta. Experimenta conflitos simples aos olhos de um adulto, mas em cenas que produzem uma incrível identificação com os pequenos. Quem já não zombou do irmão menor? Quem não "deu um chilique" por não querer emprestar um brinquedo? Os episódios narram esses fragmentos do cotidiano infantil com um final "bem resolvido" e assim cumprem uma já conhecida função das narrativas para as crianças: oferecer um terreno para elaboração de conflitos subjetivos.
Alguns adultos podem considerar Peppa chata, inconveniente ou egoísta, mas esquecem que toda criança pequena passou por alguns destes processos antes de ser educada e estar incluída no mundo organizado pelas leis que regem as relações sociais. Peppa leva às últimas consequências tudo o que Piaget e a Psicanálise nos ensinam sobre este tempo em que alguém ainda luta para se manter como centro do universo.
Enquanto isso, George, seu irmãozinho, faz gracinha nesse papel, encarnando "Sua Majestade, o Bebê". É um pequenino que fala errado, chora quando frustrado e vive com um dinossauro de pelúcia debaixo do braço. A família se vê às voltas com a administração do tal dinossauro, pois quando ele perde o objeto amado abre o maior berreiro. Diante destas cenas, quem não se lembra das caçadas aos bicos, cheirinhos e naninhas dentro de casa?
George também produz cenas hilárias, como no episódio em que, fantasiado de dinossauro, se assusta com sua própria imagem no espelho. Os adultos se divertem com as reações de George, lembram de seus bebês. Os bebês, que já assistem o programa, ficam fascinados por se identificarem com ele. As crianças maiores podem reconhecer ali uma condição pela qual já passaram e da qual estão podendo se diferenciar.
As histórias de Peppa Pig são repetitivas. Algo comum nos programas de sucesso voltados aos bem pequenos. A música, os trejeitos, as risadas, as características dos personagens e, especialmente, a presença da voz de um narrador que fica descrevendo as cenas, colocando em palavras o que está sendo visto, produzem a sensação de "mesmice" tão necessária à constituição da subjetividade infantil.
Crianças são desafiadas a ficar offline por dois dias. Será que deu certo?
A "mesmice" é um dos elementos de fascínio desta série. O que provoca um certo tédio nos adultos, mas cumpre uma função para as crianças. Françoise Dolto, psicanalista francesa, usa a expressão "mesmice do ser", para se referir àquilo que vai permitir constituirmos um primeira imagem inconsciente de quem somos. Aí reside a magia e a função da repetição: garantir a permanência e a continuidade num mundo que, aos olhos da criança pequena, é recheado de surpresas e estranhamentos.
Peppa agrada os bem pequenos, sedentos de mesmice e identificações, mas também cativa os maiorzinhos, que se espicham no sofá, ao lado de seus caçulas, discretamente Não dá pra se confessar fã, pois é um "programa para bebês". Mas não deixa de ser fascinante remeter-se a algumas questões que ainda estão em elaboração.
Ninguém é educado do dia para a noite. Deixar de ser o reizinho da casa dá trabalho, e leva muito tempo. Enquanto isso vai se operando, vale à pena assistir a Peppa e George havendo-se com essas questões, perceber o quanto já se pode estar "mais evoluído" e escutar o eco das vozes de seus pais nas palavras de Mamãe Pig.
Os pais porquinhos são um capítulo à parte. Eles raramente aparecem trabalhando, estão sempre em casa, brincando, disponíveis para os filhos e encerram as histórias junto com os pequenos, rolando em poças de lama, às gargalhadas. A família ideal retratada tem por norte uma vida dedicada aos filhos, com pais que não deixaram de ser crianças. Por outro lado, Mamãe Pig se sai melhor do que a maioria dos adultos da vida real: sempre lúcida, adequada e com uma paciência que já lhe rendeu a condição de referência entre as mães: "paciência de Mamãe Pig". Parece que os pequenos encontram aí uma imagem que faz suplência a suas mães reais, cada vez mais atarefadas, apressadas e impacientes.
Construídas pelos adultos e endereçadas às crianças, as histórias da família Pig colocam em cena um ideal de família constituído a partir da fantasia dos filhos. Neste ponto, toca os pais. Peppa Pig não apresenta heróis com superpoderes ou soluções que usem pó mágico. Mas projeta uma família em que a disponibilidade e paciência infinitas, a ausência de ambivalência e de irritabilidade nos pais, acabam por compor adultos tão irreais quanto um herói da Marvel. O cotidiano dos porquinhos parece muito próximo da realidade, por isso fica difícil de reconhecê-lo como uma fantasia, uma ilusão. Assim, adultos, estejam atentos: não tentem - ou não se exijam - fazer em casa!