* Professor e tradutor. Escreve mensalmente no PrOA
O que o leitor aprendeu com esta eleição até agora? Pelo que vi da propaganda eleitoral e pela intensa atuação de certos professores, intelectuais e jornalistas - na imprensa, em seus blogs ou nas chamadas "redes sociais" - parece que a lição mais importante é a seguinte: quem não vota no PT não gosta de pobres e vota contra os interesses deles. Trata-se de lição, creio eu, falsa, coisa que não deve causar espanto em política, especialmente quando esta é conduzida por líderes partidários que mais parecem chefes de facções e é apresentada com as roupagens artificiais preparadas por marqueteiros.
O que talvez cause algum espanto é que professores, intelectuais, jornalistas e tantos outros de quem esperamos nada menos que a consciência crítica desperta e o zelo constante pela verdade escolham voluntariamente adotar o padrão moral de líderes de facções e de marqueteiros. Deflagrado no primeiro turno como parte do processo de "desconstrução" da então candidata à presidência pelo PSB Marina Silva, o discurso que demoniza o voto na oposição passou a ser dirigido, no segundo turno, contra o candidato do PSDB, Aécio Neves. Antes, Marina era a candidata dos banqueiros que queria tirar a comida da mesa dos pobres para dar aos ricos financistas; agora, a acusação recai sobre Aécio, e com um agravante: o PSDB teria um histórico de descaso com a questão social. Por um lado, trata-se de discurso indiscutivelmente eficaz quando empregado por marqueteiros na condução das campanhas; por outro, é de se perguntar qual seu significado quando encampado de maneira acrítica por intelectuais.
Para fugir dos debates partidários e ideológicos, gostaria de invocar a figura do economista Ricardo Paes de Barros, servidor do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e subsecretário da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República do governo Dilma. PB, como é conhecido, é um economista de qualificação técnica invejável, com doutorado na Universidade de Chicago, sob orientação do prêmio Nobel em Economia James Heckman. Pioneiro nos estudos sobre políticas de combate à pobreza e à desigualdade, o "liberal" PB esteve direta ou indiretamente envolvido no desenho e na execução dos principais programas sociais dos últimos 20 anos, nos governos do PSDB e do PT, e foi um dos criadores do Bolsa Família. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (3/3/2013), Paes de Barros foi categórico ao afirmar: "A desigualdade começa a cair no ano 2000. Quer dizer, três anos antes do governo Lula ela despenca e cai à mesma velocidade que cai depois de 2003 [quando o PT chega ao poder]".
No perfil que lhe dedicou a Revista Piauí (11/2012), relata-se o desenvolvimento das políticas de transferência de renda desde a década de 90: à criação, pelo Ministério da Educação, do Bolsa Escola (programa pioneiro, frise-se, do governador Cristovam Buarque, então no PT), seguiram-se o Bolsa Alimentação e o Auxílio Gás. Ao final do segundo mandato de FHC, a então ministra da Secretaria da Assistência Social, Wanda Engel, podia afirmar que estava sendo criada uma rede de proteção social básica. O passo seguinte, segundo ela, inspirada nas lições do mestre Paes de Barros (e combatidas por amplos setores do PT à época), seria unificar essas políticas, criando um cadastro único que potencializasse a eficácia dos programas sociais - o que foi feito pelo decreto 3.877, de julho de 2001, aliás, o mesmo que a presidente Dilma Rousseff, em um gesto que lembra o totalitarismo orwelliano do romance 1984, quis apagar da história, dizendo que não existia.
Com a vitória de Lula em 2002, todas as atenções sociais do governo petista voltaram-se para o programa Fome Zero. Diante da ineficácia do programa, foi novamente o "liberal" Paes de Barros que, contrariando expressivos setores do PT, atuou em parceria com Ricardo Henriques e Marcos Lisboa (que apoiou Marina Silva e é cotado para o governo de Aécio Neves) no desenho do programa Bolsa Família: a unificação e o aperfeiçoamento das políticas de transferência de renda até então existentes.
Carlos Drummond disse que as coisas eram tristes "quando consideradas sem ênfase". E quando são consideradas sem a verdade dos fatos são também perigosas. Existem inúmeras razões para defender os governos de Lula e Dilma, todas elas respeitáveis e apreciáveis, mas nenhuma deve envolver a falsificação do passado e o sequestro de nossa memória política. Sabemos o que acontece quando intelectuais engajados entregam-se a tal missão.
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