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Se fôssemos definir nos 140 caracteres do Twitter quem é o grupo islâmico Boko Haram, bastaria traduzir seu nome: "Educação não islâmica é pecado". Mais que um nome, trata-se de um obscuro lema a ser seguido mediante as práticas bárbaras do terror, que vão dos sequestros aos assassinatos e estupros. Como foram usados apenas 30 caracteres na definição do grupo que horroriza o mundo a partir da Nigéria, poderíamos ir adiante e dizer que, por esse lema, o Boko Haram já matou 10 mil pessoas - 3,5 mil só em 2014.
Pronto, em um breve tuíte você já estaria ciente e devidamente impressionado com o tema do qual trata este texto. Mas tem muito mais. Os líderes do Boko Haram alegam lutar pela implementação da Sharia (interpretação estrita da lei islâmica) como forma de combater a corrupção, a falta de pudor das mulheres e outros "vícios" ocidentais. Para cortar pela raiz o que definem como um mal do Ocidente (na visão deles, aliás, "mal" e "ocidente" são pleonasmo), os tais líderes sequestraram, em 15 de abril, na cidade de Chibok (nordeste nigeriano), 234 meninas de sete a 15 anos, com o "pio" propósito de fazê-las recomeçar a vida como servas.
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Analistas veem peculiaridades locais em grupos fundamentalistas islâmicos como o Estado Islâmico (EI), a Jihad Islâmica, o Hamas e o Boko Haram. Mas identificam uma razão de ser comum: o objetivo de impor a Sharia em detrimento do iluminismo que deploram. Esse princípio faz com que cresçam na mesma proporção do avanço da ocidentalização e na proporção inversa à queda da crença nos valores democráticos.
- No caso do Boko Haram, a Nigéria é a economia mais forte da África. Tornou-se o grupo mais conhecido, com suas características cruéis e brutais para impor a Sharia contra os valores ocidentais - diz Kai Enno Lehmann, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
O norte da Nigéria já se tornou território contaminado pela orientação da Sharia. No sul e na capital Abuja, é diferente: a presença de cristãos é mais intensa, o que leva o Boko Haram a atribuir-lhes os supostos "males ocidentais". O resultado é que o grupo não se limita a sequestrar meninas para pô-las no caminho da subserviência à religião. Também costuma perpetrar atentados terroristas a igrejas e escolas. Sob o argumento de que a alta fertilidade das mulheres muçulmanas, combinada à matança de cristãos, fará a população islâmica se tornar majoritária, o Boko Haram exige a Sharia para todo o território nigeriano.
Um episódio emblemático ocorreu em 2001. Não por acaso, no Natal. Cinco ataques à bomba coordenados mataram 40 pessoas em quatro cidades nigerianas naquele 25 de dezembro. Os alvos foram igrejas católicas. Iniciava-se uma série de atentados, muitos com caminhões e carros blindados contra vilas cristãs e escolas de meninas, o alvo predileto, uma vez que as mulheres devem ser especialmente subservientes.
Muitas das meninas são sequestradas, escravizadas e estupradas pelos terroristas e por moradores de vilas muçulmanas, com o efeito de provocar a adesão agradecida dos estupradores sedentos de prazer, o aumento da popularidade do grupo e a perversa estratégia de fazer com que essas adolescentes gerem em seus ventres mais muçulmanos, para se sobreporem aos cristãos. No caso das garotinhas mais resistentes, há o costume de lixar o mamilo direito na soleira da porta até que desapareça ou de submetê-las a mutilação genital.
A professora Analúcia Danilevicz Pereira, da UFRGS, identifica "falta de referências" quanto a princípios civilizatórios e "cenário de desordem" provocado pelo que é uma "estratégia de poder". As palavras "poder" e "desordem" soam como paradoxo. E é disso que se trata. O barbarismo do Boko Haram guarda, paradoxalmente, lógica perversa de conquista de poder e território.
- A emergência desses grupos ocorre em locais onde havia algum desenvolvimento estatal. A Nigéria cresceu muito, ultrapassou a África do Sul. Também esses grupos se aproveitam do vácuo de poder e tentam agravá-lo. Isso ocorre com o EI na Síria e no Iraque e com o Hamas, que fragiliza a ligação entre palestinos e países árabes e até entre palestinos e Israel para o processo de paz - diz Analúcia.
A organização Human Rights Watch divulgou relatório que revela outra lógica em meio à barbárie. Meninas e mulheres sequestradas pelo Boko Haram foram usadas em operações de combate, forçadas a atrair homens para emboscadas e a se casarem com raptores. A HRW entrevistou 46 ex-reféns e testemunhas, que descreveram abusos físicos e psicológicos, incluindo os espancamentos e estupros. Uma das vítimas foi forçada a se deitar no mato e segurar balas enquanto os militantes combatiam:
- Quando as forças de segurança chegaram ao local e começaram a atirar contra nós, caí. Os insurgentes me arrastaram enquanto fugiam de volta ao seu campo - conta a menina de 19 anos.
Em outra operação, a mesma jovem recebeu ordens de abordar um grupo de cinco homens e atraí-los para onde os militantes do Boko Haram se escondiam. Os terroristas, então, emboscaram os homens e cortaram a garganta de quatro deles antes de dar a faca à garota e mandar que ela matasse o quinto. A garota não conseguiu, cabendo a incumbência à mulher de um líder.
As meninas ouvidas pelo HRW relatam como foram atacadas, estupradas e obrigadas a se casar depois de serem convertidas à força ao islamismo. A prática provocou comoção internacional. Em abril, quando as 234 meninas foram sequestradas, surgiu o movimento "Bring back our girls" ("Tragam de volta nossas filhas"), com forte apelo nas redes sociais.
Hoje, já são 276 adolescentes entre 12 e 17 anos em poder do Boko Haram. Os pais das meninas raptadas costumam definir os últimos seis meses como uma "montanha-russa emocional". Há fases de esperança e longos períodos de agonia, conforme Mark Enoque, chefe do conselho de anciãos de Chibok, cujas filha e sobrinha estão entre as prisioneiras. E a esperança se esvai a cada dia.