* Jornalista e psicanalista. Escreve mensalmente no PrOA
Quando meu primeiro amigo virou criança, fiquei intrigado com o fenômeno. Foi só lá pela terceira ou quarta transformação que me dei conta do porquê: havia chegado outubro. Aos poucos, fotos de crianças foram substituindo rostos de adultos na timeline no Facebook. A brincadeira que marca o mês das crianças já acontece há poucos anos, mas na temporalidade da internet já pode ser considerada uma tradição.
Nunca tinha participado do jogo, mas este ano me senti tentado a ir atrás de alguma foto dos meus álbuns de infância. Selecionei algumas das melhores e as fotografei com meu telefone, pensando no espanto que essa ideia causaria na época em que foram tiradas. Mas hesitei: será que deveria entrar na brincadeira? Não estaria aderindo com meu ato à infantilização da qual se acusam, muitas vezes não sem razão, nossos tempos?
Imagens de bebês e crianças estão entre as mais curtidas na rede social. Pais orgulhosos inundam as timelines dos amigos com fotos e fatos fofinhos de seus rebentos, e os amigos, como aquelas tias de antanho, retribuem com likes e comentários derretidos. Postar foto de criança é garantia de sucesso, condição da qual nossos outros compartilhamentos nem sempre gozam. Mas o que têm as crianças que as torna tão irresistíveis aos nossos olhos?
Simpatizamos com elas por uma identificação com nossa própria infância - a que tivemos ou a que gostaríamos de ter tido. A passagem dos anos cobre os primórdios da vida com uma aura de tempos mais fáceis e promissores, mesmo que ser criança esteja longe de ser algo tranquilo. As crianças nos remetem ao imaginário nostálgico de toda uma vida pela frente, de descobertas inocentes, de sonhos grandiosos alimentados pelo narcisismo dos pais, que veem em seus filhos versões melhores de si mesmos.
Mas as crianças não vivem nesse paraíso que imaginamos. Desejam ser grandes para libertar-se da dependência dos pais que, por mais carinhosos que sejam, têm sempre uma faceta opressora. Porém, crescer não acontece da forma como é fantasiado: o dinheiro não nasce em árvores, o amor e as amizades precisam ser alimentados e cuidados. Temos de negociar, renunciar, ceder, tropeçar e levantar. No entanto, racionalidade adulta não substitui o pensamento infantil: nossos desejos antigos seguem nos animando, mesmo que disfarçados com roupagens mais sérias.
A brincadeira do Facebook oferece aos adultos a oportunidade de receberem manifestações que normalmente são destinadas apenas às crianças. Ganhamos elogios sem esforço, como aqueles recebidos (ou ansiados) de mães, tios, avós apenas por um sorriso ou uma folha de papel com garatujas. Nos abastecemos de um tipo de afeto ao qual tivemos que renunciar para crescer e nos tornarmos independentes, mas com cuja perda não nos conformamos totalmente. Guardamos um secreto ressentimento para com os pais por não termos sido suficientemente amados, afinal de contas acabamos precisando enfrentar privações, frustrações, tropeções, por mais que tenham se empenhado em nos preservar disso.
Uma das marcas da contemporaneidade é uma maior maleabilidade da linha rígida que outrora separava crianças de adultos. Isso traz consigo certos impasses, como a dificuldade de muitos pais de impor limites a seus filhos ou de sustentar uma posição de autoridade. Por outro lado, abre-se espaço para o diálogo entre gerações e para o reconhecimento das crianças como sujeitos. Os adultos não precisam mais se envergonhar de sua condição infantil: podem brincar, adultez e sisudez não são mais sinônimos. A maioria das crianças urbanas de hoje pode não ter mais a turminha da rua, mas muitas encontram em seus pais, além de provedores e educadores, também companheiros de brincadeira.
Acabei decidindo ser menos sisudo e também entrei no jogo do Facebook, não só para ganhar uns afagos no ego, sempre nostálgico dos paparicos da infância. Também temos a comemorar no mês das crianças, pois hoje é possível ser um adulto sério e responsável sem ter de renunciar a brincar como (e com) as crianças.