* Professor titular de Ética e Filosofia na USP. Escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
Democracia virou uma palavra simpática. Isso é recente. Até a II Guerra Mundial, era comum a elite usá-la com desprezo. Mas, desde que o fascismo perdeu a guerra, as coisas mudaram. Democracia virou tudo de bom. Uma ditadura de direita, como a brasileira, se dizia democracia ocidental e cristã ou, num momento sincero, "democracia relativa". Ditaduras comunistas eram democracias populares.
Quando ditadores se dizem democratas, é porque sabem que sua prática é indefensável. Falta ainda muito para a democracia - mas a vitória da palavra prenuncia sua conversão em realidade. Palavras são poderosas.
Mas, como a democracia é do bem, tendemos a associar-lhe tudo o que é bom. E há coisa melhor do que ser governado pelos melhores? Ter um festival de competência no governo? Só que aí não é democracia. Porque "melhor", em grego, é "ariston". O governo dos melhores se chama aristocracia. Não é democracia. Talvez seja seu maior inimigo.
Há democracia quando todos, o que significa uma maioria de pobres, têm o poder. Não precisamos mais ser os melhores, o que hoje significaria os mais competentes em gestão e até cem anos atrás designaria os mais aptos ao uso das armas (substituímos a guerra pela administração). Quer dizer que a multidão de pessoas simples é quem deve decidir os destinos do país, do mundo.
É óbvio que a multidão não pode decidir sobre a competência em gestão. Esse argumento sempre foi assacado contra a democracia. Mas a decisão primordial é sobre valores. Ela cabe ao povo. Queremos uma sociedade da concorrência? Votamos à direita. Da solidariedade? À esquerda.
A competência entra em cena na hora de implementar uma política ou outra. Quem a converterá em prática, esse sim, deve ser muito bom. Para isso há burocracia e concursos públicos. Há assim o lugar da democracia, que é o da grande escolha entre valores, e o da burocracia, que é o da competência.
Só que é difícil tolerar a igualdade! Nossa sociedade se construiu durante 500 anos sobre a desigualdade. Lembro que em 2001, no funeral do governador paulista Mario Covas - um político que amava o povão - houve duas filas, uma para as pessoas simples, outra para os VIPs. E o pior é que achamos isso natural.
Em período eleitoral, sempre há quem reclame que o sufrágio dos ignorantes - que "vendem o voto" - valha o mesmo que o nosso. Aliás, alguns defendem o voto facultativo, não porque não queiram votar, mas porque não querem que os pobres votem. São contra o voto obrigatório, dizem, mas na verdade querem o obrigatório não voto dos pobres.
Dois séculos atrás, Tocqueville dizia que o mundo tende à igualdade. Tinha razão. Só que é demorado! Moral da história: quem quiser barrar a igualdade perde o seu tempo, mas também ganha tempo - dias, meses, anos. O que podemos é acelerar a chegada da igualdade. Enquanto isso, respeitemos o voto. O dia de eleições é o único em que todos os brasileiros valem igual. Lutemos para que isso ocorra todos os dias da vida de todos.