
* Adriana Amaral é professora do programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos (RS) e pesquisadora do CNPq em temas relacionados à cultura digital, sociabilidades e identidades. Doutora em Comunicação pela PUCRS.
* Rodrigo de Oliveira é Mestre em Comunicação pela Unisinos. Coordenador do curso de Design Visual da Unochapecó (SC) e Game Designer.
Desde seu surgimento, os jogos eletrônicos têm presença forte em áreas onde há predominância de interesse do público masculino. Os primeiros videogames não foram jogados em fliperamas ou em residências, mas em bases militares, laboratórios e departamentos de pesquisa em tecnologia, locais onde era maior a presença de homens do que de mulheres (sobretudo nos EUA). Os games foram aparecendo paralelamente em diversos segmentos, entre o princípio da década de 1950 e o fim dos anos 1960. A forma comercial e popular apresentou-se apenas no início da década de 1970, com os fliperamas e suas máquinas de jogos operados por moedas. A presença masculina nestes espaços, especialmente de adolescentes, era predominante, contribuindo, já no nascimento da indústria, para a ideia de que jogos eletrônicos seriam "coisas de menino".
A realidade atual é diferente, mas esse estigma perdura, principalmente, se observarmos algumas estratégias do mercado. O documentário Videogames: The Movie (2014) apresenta um histórico dos games na sociedade considerando aspectos tecnológicos, mercadológicos e culturais, mostrando que, mesmo que hoje eles sejam consumidos tanto por homens quanto mulheres, em sua origem quase não se vê a presença feminina. O filme também mostra uma espécie de formação da cultura gamer constituindo-se predominantemente por homens competindo em massa nos primeiros jogos populares, algo também visto em The King of Kong: A Fistful of Quarters (2007), outro documentário sobre os primórdios da comunidade. Praticamente não há mulheres protagonistas nos filmes - seja na criação ou produção dos games, seja entre jogadores.
Hoje, é notável a presença de mulheres em blogs, podcasts e programas no YouTube falando sobre videogames, porém, com uma frequência ainda menor do que a dos homens. Um exemplo famoso é o site Feminist Frequency (feministfrequency.com), encabeçado pela crítica de mídia e blogueira Anita Sarkeesian. Na série de vídeos que Anita produz são apresentados diversos casos de representação feminina em produtos e narrativas da cultura pop, incluindo brinquedos, games, cinema, quadrinhos, etc. Sarkeesian faz vídeos criticando tanto a forma como a indústria apresenta a mulher quanto como cria seus produtos direcionados aos diferentes nichos, assim como também conversa sobre as expressões do público em relação ao tema. Em consequência, ela tem sido alvo de fortes represálias por parte de pessoas (homens e mulheres) que, de uma forma ou de outra, posicionam-se contrárias às ideias de Anita, alegando que suas reivindicações podem prejudicar a indústria dos jogos ou mesmo que, por declarar-se como feminista, ela não tem um olhar isento. A blogueira recebe ameaças de morte e estupro constantemente nas redes sociais e recentemente cancelou uma palestra em uma universidade por conta disso.
Até que chegamos ao recente episódio nos Estados Unidos intitulado pela mídia de GamersGate. O "movimento" descrito por esse nome alega que atender as reivindicações femininas na produção e no consumo de games levaria a indústria a um caminho decrescente ou nocivo para aqueles que há muito tempo tratam os games como um estilo de vida, ou seja, um grupo específico e numeroso de indivíduos que se intitulam como gamers "de verdade" - como se fossem os "cinéfilos" dos jogos.
Um exemplo relacionando o GamersGate e a violência de gênero é o das desenvolvedoras Brianna Wu e Amanda Warner, fundadoras da empresa Giant Spacekat, que se propunha a criar jogos com protagonistas femininas. No início deste semestre, elas lançaram o game Revolution 60, narrativa de aventura espacial estrelada por mulheres. Apesar dos elogios da crítica especializada e de vários outros desenvolvedores, houve bastante gente incomodada com a mensagem feminista implícita, ao ponto de ambas receberem ameaças de estupro e morte. Inclusive, uma conta de Twitter intitulada Death to Brianna foi criada como protesto à produção da desenvolvedora.
Zoe Quinn foi, provavelmente, a personagem inicial do que a mídia chama de GamersGate. Em 2013, a garota lançou um jogo chamado Depression Quest, que mostrava situações pouco convencionais no mundo dos games. O jogador era instado a assumir o ponto de vista de um personagem com depressão e a escolher entre opções como sair para ver amigos ou ficar em casa vendo TV. A intenção do jogo era mostrar a depressão que Zoe enfrenta desde muito jovem. Apesar de agradar muitos críticos e público, o jogo se tornou mais conhecido depois que o ex-namorado da desenvolvedora, insatisfeito com o fim do relacionamento, criou um site expondo intimidades do casal, acusando-a, inclusive, de ter tido relações com jornalistas para que seu jogo fosse bem cotado nas avaliações. Se Zoe traiu ou não o ex-namorado, não está em questão, mas o rumor é constantemente mencionado para diminuir seu valor enquanto profissional dos games, um juízo que provavelmente não aconteceria se ela fosse homem. Pouco parece importar se Depression Quest é bem construído e traz uma temática importante, a suposta traição ao namorado parece ser motivo para muitos homens e mulheres desejarem que ela seja estuprada e morta, como expresso em mensagens em grupos de redes sociais como W.A.F.G (Women Against Feminist Gamers), que fomenta no Facebook debates contra várias formas de movimentos feministas dentro da cultura dos jogos eletrônicos.
Por outro lado, as declarações de Sasha Grey, famosa estrela pornô e jogadora de League of Legends (conhecido como LoL), têm contribuído para uma desconstrução de estereótipos de gamers. E por falar em LoL, há dados e debates interessantes sobre a adoção do jogo pela comunidade gay e transexual em suas preferências. O volume de discussões sobre as questões de gênero no âmbito da cultura digital e da cultura gamer demonstra a importância das mesmas. Entendemos também que os discursos de ódio, violência simbólica e ameaças contra quem exerce seu direito de falar contra a indústria dão mais munição às críticas - por vezes exacerbadas - e confirmam que o debate sobre gênero nessa área ainda está longe de um denominador comum.