No final de março deste ano, quando parcela significativa do país debruçava-se sobre a tarefa de examinar os 50 anos do golpe militar de 1964, foi no caderno especial dedicado ao tema pelo jornal O Estado de São Paulo que li uma das melhores reflexões sobre o assunto.
Em seu artigo, (Democracia Requer Aceitar a Contrariedade, 30/03/2014), José Arthur Giannotti, filósofo e professor emérito da Universidade de São Paulo, chamava atenção para o processo de mútua exclusão dos grupos que se articulavam no poder e nas forças golpistas. "Excluir para não ser excluído" parece ter sido o mote tanto daqueles que queriam reformar o país a despeito da necessidade de convencimento de seus oponentes quanto daqueles que, em nome de uma suposta defesa da verdadeira democracia, conduziram o país ao caminho dos horrores de uma ditadura que perseguiu, prendeu, torturou e matou.
No paralelo que traçava com o Brasil de 2014, Giannotti rejeitava - com razão, penso - qualquer presença real das disposições golpistas de 50 anos antes, mas alertava, em uma síntese impecável já antecipada no título de seu artigo: "Nossa tarefa é manter uma contrariedade democrática que compreenda a contradição".
O alerta de Giannotti volta à cena neste final de ano pós-eleições presidenciais - por boas e más razões, devo dizer. A boa razão é que saiu, não faz muito, um novo livro de Giannotti em que as reflexões que mencionei acima são desenvolvidas com mais fôlego, inseridas que estão no quadro geral das preocupações filosóficas do autor. A Política no Limite do Pensar (e-book, Breve Companhia) é, como reconhece seu autor, um "texto de intervenção", mas com indiscutível vigor filosófico, não sem alguma tecnicalidade. A má razão, como já bem deve estar a supor o leitor, é que saímos de uma eleição que em não poucos momentos golpeou os bons valores democráticos. Some-se a isso, e mais grave ainda, testemunhamos, nessas poucas semanas que se seguiram ao resultado eleitoral do segundo turno, a manutenção das tensões político-partidárias, para não falar do baixíssimo nível de apreço pela democracia e por suas instituições. Mas comecemos pelo lado bom.
O leitor já familiarizado com a obra de José Arthur Giannotti reconhecerá, de pronto, a presença de certos temas e de certos autores que lhe são caros. A incursão pela obra de Karl Marx e o exame da noção de contradição, assim como a presença quase que total de Ludwig Wittgenstein como pedra de toque da investigação do autor já são conhecidas desde Certa Herança Marxista (relançado este ano) e Apresentação do Mundo (1995), ambos publicados pela Companhia das Letras.
A esses temas recorrentes, sua análise, agora voltada para o fenômeno da política e dos "jogos de linguagem" que ela requer que sejam jogados, aproveita para, por exemplo, desvelar a presença incômoda de certas concepções de pendor autoritário do filósofo alemão Martin Heidegger (novamente envolto, com a publicação recente de seus Cadernos Negros, em tremendas polêmicas em virtude de suas opiniões inequivocamente antissemitas e seu nazismo mais que "de conveniência") no pensamento de alguns darlings dos progressistas acadêmicos: Lacan, Deleuze, Foucault, largamente celebrados no Brasil, como se sabe. Do terror jacobino ao totalitarismo leninista; de Carl Schmitt a Walter Benjamin, Giannotti analisa o modo como a contradição, trazida para a política, foi entendida como eliminação ou exclusão (física ou simbólica) do outro, animando projetos ideológicos por vezes diametralmente opostos.
Se é verdade que o livro exige, por vezes mais, por vezes menos, familiaridade com a Filosofia, não me parece menos verdadeiro afirmar que algumas de suas conclusões importam imensamente para nossa realidade presente. Ao reafirmar nossa aposta na democracia, Giannotti deixa claro que somente ela é capaz de romper com a contradição entre "amigos e inimigos" - precisamente a contradição que requer a eliminação ou a exclusão total do outro - e instaurar a política no âmbito das contrariedades legítimas entre "aliados e adversários". Essa lição deveria ser repetida à exaustão em nossos dias, especialmente quando vimos, "estarrecidos", um ex-presidente da República, em ato de campanha (ou de difamação), o Lula, a insultar seus adversários de "nazistas"; ou, mais recentemente, os tresloucados (e não, não eram meia dúzia) que desfilaram na Avenida Paulista pedindo impeachment da presidente Dilma Rousseff e intervenção militar imediata. Essa é a lógica da contradição "amigo/inimigo", integralmente incompatível com a democracia. Não é essa a cultura democrática que desejamos para o país.
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* Professor e tradutor. Escreve mensalmente no PrOA