Três mulheres nuas foram flagradas pelas ruas de Porto Alegre. A causa da nudez é desconhecida. Não se sabe se fazem parte de alguma campanha publicitária, se seriam ativistas, ou se, simplesmente resolveram "atentar" contra o pudor para liberarem-se das tensões da vida cotidiana. Outros contam que um homem teria ido sozinho a uma caminhada de "pelados" previamente agendada pelas redes sociais.
Antes desses eventos, em setembro de 2013, a performance do grupo Falos & Stercus nas margens do maltratado arroio Dilúvio chamava a atenção mais pelos participantes nus do que pela causa que pudesse estar defendendo. O nu, numa sociedade vestida, é, de alguma forma, uma questão que chama, pela curiosidade, à especulação.
O que significa a onda de peladas em Porto Alegre
Enquanto isso uma chamada incomum convocando a "correr pelado" recebeu uma confirmação espantosa de milhares de pessoas em redes como Facebook. Trata-se de uma brincadeira e fica claro que as pessoas simpatizam com a coisa toda. Do despir-se literal, surge o simbólico, como na expressão "despir-se dos preconceitos" que é um dos motes do evento.
Primeiro caso foi em 30 de outubro, no Parcão
Talvez ninguém - salvo exceção - fosse capaz de realmente tirar a roupa e sair correndo pelas ruas apenas para brincar de "pelado". Mas aqueles que confirmaram presença no evento - inclusive esta que vos escreve - devem pensar que faria bem apoiar a "causa" por aquilo que ela tem justamente de nonsense. Em um contexto em que todos os gestos devem ser úteis, sobretudo quando vivemos na frieza própria à sociedade da produção e do consumo, até o extremo das expressões fascistas cheias de ódio de nossa época, a nudez expressa um desejo de brincadeira quase infantil. Ela se torna uma espécie de ato protorrevolucionário no contexto moralista da cultura. Assim, a nudez é um gesto complexo que tem algo a nos dizer.
Segundo caso foi na Terceira Perimetral, em 6 de novembro
Seja orquestração publicitária, seja o gesto esporádico que pode vir a se tornar hábito, seja crime ou loucura, o fato tem algo de estranheza inquietante. O nu é algo totalmente familiar, mas ao mesmo tempo, quando irrompe nos gestos atuais, torna-se o mais desconhecido. Para os que não souberem brincar, pode causar extremo horror.
Mulher é flagrada novamente andando pelada em Porto Alegre
O terceiro caso foi no dia 9 de novembro, um domingo, no centro da Capital
A verdade é a nudez
Mais do que metáfora, se há alguma verdade neste mundo, ela é a nudez. Nascemos nus. O que a nudez tem a dizer é sempre a verdade, aquela que, perdida desde nosso nascimento, esperamos que um dia volte a aparecer. Lembremos da conhecida Vênus de Botticelli saindo sem vestes de uma concha. Sua nudez em estado de arte era a própria expressão da verdade que não cabia nesse mundo de cultura, de gente vestida.
Em medidas diversas, a nudez não é tão estranha assim. Na televisão, no cinema, nas revistas e jornais, nos outdoors, nas festas, ruas, na arte. Na verdade, o corpo nu nesses contextos autorizados e até desejados, não põe em cena a verdadeira nudez. A nudez verdadeira está sempre fora de contexto.
Em uma sociedade moralista que rebaixa a nudez à perversão ou que administra-a como mercadoria, a nudez desregulamentada se torna tabu. A verdade fora do propósito é proibida no sistema moral e econômico. O pudor neste contexto social surge com a função de acobertar o potencial, o poder da nudez.
"Toda nudez será castigada", já dizia a fórmula. Se lembrarmos das mulheres do grupo de ativismo feminista FEMEM, que utilizam a nudez como estratégia de luta, temos um exemplo do poder contra o pudor. A antipatia contra o FEMEM se deve à interpretação da nudez como ato exibicionista e não como genuinamente política. Quem, no entanto, poderá negar o efeito político da postura do grupo FEMEM? O dado político da desnudez depende de nosso olhar, um olhar que seja capaz de ver além da mercadoria à qual rebaixamos os nossos corpos.
A mesma mulher vista na Terceira Perimetral saiu nua novamente, no dia 15, desta vez na Zona Sul
Corpo e moral
A nudez é a verdade no meio da falsidade. A essência no meio da aparência, a natureza no meio da cultura, sendo justamente aquilo que sobressai na cultura do vestido. Como diz a antropóloga Miriam Goldemberg, remetendo à questão do corpo como capital, no Brasil as pessoas se vestem para mostrar o corpo, não para escondê-lo. Mas o corpo que se mostra nunca é o corpo nu, é apenas o corpo como objeto do capital, tratado para valer como mercadoria. A nudez mesmo está além desse corpo que se mostra. E é ela que poderia verdadeiramente nos chocar. O choque com o despudor é falso. É moralista.
Curioso que em um país que tem uma história tão bonita com o nu, sejamos hoje tão pouco abertos a ele. Somos o país no qual Pero Vaz de Caminha extasiou-se com a beleza dos corpos nus. Hoje, contudo, parecemos mais moralistas do que qualquer outro lugar. Aqui a prática do topless é proibida, as praias de nudismo soam como lugares esquisitos, enquanto que, em outros países, pessoas de qualquer idade banham-se nuas nos lagos municipais. Somos, afinal, o país dos povos indígenas, para os quais a nudez se apresenta com a naturalidade de veste. O assassinato dos povos indígenas, e a feiura do Brasil, começou quando os vestimos. Houvéssemos ficado nus, talvez tivéssemos um futuro melhor.
A nudez desregulamentada que impressiona os brasileiros hoje, talvez seja nostalgia inconsciente de um país que se perdeu. Nostalgia de um dia em que, nus, não devíamos nada a ninguém, e éramos mais bonitos.
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