* Jornalista e psicanalista. Escreve mensalmente no PrOA
Com a pergunta do título, enunciada em tom sarcástico durante um congresso, um homem interrogou sobre as bases genéticas que explicariam a minguada presença de mulheres no meio científico. Quem tomou a palavra para responder foi o renomado astrofísico Neil DeGrasse Tyson, cuja fala, registrada em vídeo, viralizou nas redes sociais.
Tyson começa dizendo, bem-humorado, que nunca foi mulher, mas sempre foi negro, o que talvez lhe desse alguma autoridade para falar de minorias no meio científico. Narra como a cor de sua pele lhe rendeu muitas resistências do entorno, professores incluídos, ao sonho de tornar-se astrofísico. Por que queria um jovem negro como ele ser cientista, e não atleta? Conseguiu alcançar seu objetivo graças à força de seu desejo, mas lança uma pergunta: e quem viveu uma situação semelhante, mas sucumbiu à pressão?
Para exemplificar como é pertencer a uma minoria, contou um episódio no qual, ao sair de uma loja, o alarme disparou. Os seguranças não hesitaram: foram direto a ele para revistá-lo, ignorando o homem branco que passara ao mesmo tempo pelo sensor, portando os bens roubados. A engenhosa estratégia funcionava porque o ladrão podia antecipar a reação dos seguranças, a suspeita recairia sobre o negro. Sei, pela voz de amigos e pacientes, como a cor de sua pele já lhes rendeu situações parecidas, bem como muitas outras mais veladas, mas não por isso menos constrangedoras.
A resposta de Tyson faz pensar no despropósito da pergunta do colega. Faz sentido buscar no DNA a resposta sobre a inserção social de um grupo de pessoas, quando há forças externas tão poderosas em jogo? Buscar atribuir as diferenças entre os sujeitos a uma suposta essência foi uma tendência da ciência do começo do século passado, e seus resultados não foram muito bons, às vezes catastróficos. Apesar da fantasia de que as respostas às eternas perguntas sobre a existência estão apenas esperando para ser decifradas no DNA, a genética jamais dará conta sozinha da complexidade da experiência humana.
O que Tyson expõe é algo do qual muitas vezes não nos damos conta: o olhar do outro não apenas nos marca, mas em grande medida determina nossa existência. Na sociedade atual isso é negado pelo mito da individualidade, que nos apresenta como entidades isoladas das forças do entorno, como se cada um fosse protagonista de sua vida e os outros, meros figurantes. Basta relembrar a própria infância para saber que isso não é bem assim: a forma como nos constituímos e pensamos tem muito a ver com como fomos olhados e falados, com as expectativas que recaíram ou não sobre nós.
Não apenas os negros podem testemunhar dos efeitos muitas vezes nefastos do olhar do outro sobre suas vidas. Gays, lésbicas e outros representantes de tonalidades da sexualidade humana além do preto e branco da heterossexualidade conhecem bem os efeitos do olhar alheio. O mesmo acontece com quem introduz sua diferença em espaços supostamente abertos a todos, mas tacitamente reservados a alguns. Um exemplo recente, entre tantos outros, é a reação de algumas pessoas à "invasão" da chamada classe C nas ruas e aeroportos brasileiros.
Vivemos em tempos em que as ditas minorias têm podido se insurgir contra a violência desse olhar que vem do outro. O maior exemplo disso são as mulheres, uma "minoria" que, apesar de ser majoritária, segue não gozando de condições iguais às dos homens. A reivindicação que estes sujeitos têm não é o apagamento das diferenças, mas sim o direito à diferença sem que esta justifique a desigualdade. O termo "minoria" talvez diga menos do número de integrantes de um coletivo que do valor que o olho público lhe atribui.
Quem transgride o status quo com sua diferença lança uma interrogação sobre os valores e as pessoas que o sustentam. É importante poder questionar a naturalidade do próprio olhar, sobretudo quando algo do outro o inquieta. Aquilo que causa estranhamento ao olhar pode estar falando mais de quem olha do que daquele que é olhado. Quem muito vigia o outro, denuncia a rigidez do próprio olhar sobre si mesmo.
A identidade não é imanente ao indivíduo, como o DNA. Ela é, em grande medida, determinada por como somos - ou imaginamos que somos - olhados. Escolher viver submetido (e submetendo) a esse olhar pode trazer a tranquilidade da adaptação e da aceitação, a ilusão de uma identidade sólida. Essa escolha pode, porém, impedir de viver algo interessante: seja uma profissão inusitada, um amor diferente, ou qualquer outra forma de expressão da tão humana singularidade.
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