Porto Alegre

Acordo histórico

Aproximação de Cuba é passo de realinhamento da estratégia norte-americana no continente

Professor Paulo Fagundes Visentini analisa a decisão de Barack Obama de aceitar a retomada de relações diplomáticas com a ilha governada por Raúl Castro

Tadeu Vilani / Agencia RBS
Foto da exposição "Compadre, qué pasa?", do fotógrafo Tadeu Vilani - veja mais na galeria

* Historiador, professor titular de Relações Internacionais da UFRGS.

Analistas vinham insistindo que Barack Obama estava acabado politicamente após a contundente vitória dos Republicanos na última eleição legislativa. E há tempos consideravam que "Raúl representa apenas uma continuidade, imobilista e sem carisma, de Fidel Castro". Tais afirmativas caíram por terra esta semana, após 18 meses de negociações ultrassecretas. Com o apoio do Canadá e do Vaticano do Papa Francisco, foi preparada uma guinada quase tão surpreendente como a que Nixon e Kissinger promoveram com a China em 1971. A libertação dos "Últimos Guerreiros da Guerra Fria" (segundo Fernando Morais) pelos EUA e de dois condenados por espionagem em Cuba (com a promessa de soltura de dezenas de dissidentes), sela o impactante evento diplomático, que encerrou mais de meio século de antagonismo e ruptura.

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O lugar de Cuba

Quais as razões dessa surpreendente guinada? O que cada um ganha com isso? Em primeiro lugar, apesar do inegável impacto histórico, o reatamento tem mais efeitos indiretos do que diretos. Cuba perdera a importância estratégica com o fim da Guerra Fria, ao retirar seu exército da África e seus assessores da Nicarágua. O contencioso com os EUA se manteve, primordialmente, por uma questão de política interna: a força eleitoral e midiática da comunidade cubano-americana (que está furiosa com Obama).

Todavia, o que parecia impossível aconteceu: Cuba sobreviveu, embora em condições penosas, sustentada pelos serviços médicos, biotecnologia e turismo europeu e canadense. Para certos Estados da América Latina, manter relações estreitas com ela representa uma demonstração de autonomia face ao gigante ianque. E para o que restou da desorientada esquerda latino-americana, a ilha passou a ser uma reminiscência ideológica e uma colônia de férias, onde respira o socialismo que desistiu de implantar em casa.

Mudam as estratégias

Com Chávez na Venezuela, teve início uma onda nacionalista e esquerdista (não tanto socialista) na região, variada e sem foco muito definido, como reação ao custo social do neoliberalismo. Os veteranos da Sierra Maestra deram então a alguns, como à Venezuela, uma orientação, e a outros, como à Nicarágua, certa legitimidade. Mas Fidel se aposentou e Raúl procedeu a microrreformas, enquanto os EUA sofriam o desgaste da Guerra ao Terrorismo no Oriente Médio e a crise econômica em casa. E a Casa Branca, então, se deu conta do quanto havia se afastado da América Latina, a qual era necessário resgatar para fazer frente à China e à Rússia.

Obama não é um líder errático e está, sutilmente, promovendo o realinhamento da estratégia americana, pois tem trabalhado para solucionar focos de tensão locais. O propósito é o de concentrar os esforços na contenção das potências eurasianas, Rússia e China, iniciando pela primeira, que é a mais vulnerável. Moscou se reaproximara de Cuba, mantém cooperação militar com a Venezuela e realizou manobras aeronavais no Caribe. Assim, como no caso do Irã, Washington busca se aproximar de antigos rivais para afastá-los das potências emergentes. No plano doméstico, a agenda política sofrerá grande alteração, confundindo os Republicanos, pois, afinal, qual é o adversário principal, a pequena ilha ou as potências eurasianas?

Convívio das diferenças

Apesar das reações, as relações EUA-América Latina devem sofrer certa distensão e provocar realinhamentos diplomáticos e do discurso político. Para Cuba, cujas reformas avançaram muito durante as negociações secretas, haveria melhores condições para mudanças longamente postergadas. E mais negócios. Afinal, europeus, canadenses, russos e chineses estão presentes quando a ilha inicia a explorar petróleo comercialmente. E necessita investimentos em infraestrutura. Contudo, o embargo econômico institucionalizado continua, mas alguns tópicos foram relaxados e o diálogo político de alto nível deve alterar, ao menos em parte, tal situação.

Cuba ganha o reconhecimento diplomático dos EUA e espaço de barganha, enquanto os últimos desarticulam coalizões e discursos críticos no hemisfério ocidental. Se a direita perde o foco, o mesmo ocorre com a esquerda. Contudo, a normalização não significa o fim do antagonismo, pois embora o governo cubano seja reconhecido, está mais sujeito a regras internacionais, e ONGs euro-americanas buscarão explorar a oportunidade contra o regime.

Por isso, Raúl Castro mencionou "o necessário convívio civilizado das diferenças", e reagirá, dentro de limites, contra ingerências externas, inclusive nos fóruns regionais. Se os americanos não aliviarem a pressão, Cuba poderá abrir espaço aos russos e chineses, num movimento pendular. Esse é o jogo de Havana, que busca a sobrevivência de seu socialismo. Já os EUA, ao contrário da visão de certos analistas, possuem sim uma grande estratégia e, em certa medida, estão conseguindo reverter a difícil situação que havia em 2009, quando Obama assumiu.

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