* Jornalista e psicanalista. Escreve mensalmente no caderno PrOA.
Medeia, personagem da mitologia grega eternizada por Eurípides, será para sempre lembrada por sua crueldade, que culminou no assassinato de seus próprios filhos. O motivo do crime era vingar-se do pai das crianças, Jasão, que a deixara para ficar com outra mulher. Como todo personagem mítico, Medeia sobreviveu à passagem dos séculos porque revela algo de nossa mais íntima verdade.
O fim de um amor, sobretudo quando chega como uma decisão anunciada pelo outro, tem a capacidade de revirar os calabouços da alma humana. Ser deixado por alguém que amamos e com quem sonhamos uma vida pode levar a nos sentirmos indignos de qualquer amor, inclusive do amor-próprio. A agressividade é uma forma de tentar se defender do desamparo e da aniquilação narcísica que o fim de uma relação pode anunciar. É preciso matar o outro simbolicamente para poder seguir com a vida. Às vezes isso acaba, como nos crimes passionais, passando da fantasia ao ato.
Uma relação amorosa é uma forma de nos sentirmos menos desamparados e solitários, mas é também uma aposta que dá contornos ao sempre incerto futuro. O fim de um relacionamento traz uma série de outras separações, além das de ordem prática como bens e rotinas: é preciso também se separar dos sonhos e projetos que haviam sido imaginados. Renunciar aos planos, desejos e expectativas e ter de reconstruí-los e reconfigurá-los é bem mais trabalhoso que decidir quem fica com o carro ou o apartamento.
Os filhos de uma relação também carregam a marca da aposta no futuro. São o fruto de um encontro, encarnam um desejo que em algum momento se compartilhou. A decisão de como lidar com esse sonho em forma de ser vivo é mais delicada: não é mais um bem a ser requisitado, ou um plano a ser abandonado. Eles representam algo indissolúvel daquele laço amoroso, presentificam o outro em seus traços, são uma prova viva da história a dois, mesmo que esta tenha chegado ao fim.
Separações traumáticas ou litigiosas podem despertar a Medeia adormecida em homens e mulheres, colocando o filho como parte do arsenal na guerra de amor. Há outras formas mais sutis que o infanticídio, mas não por isso inócuas, de usar os filhos contra o outro. Não são raras situações em que um ou ambos os pais fazem da criança partícipe da discussão conjugal, compartilhando acusações e queixas, depositando nela o ódio endereçado ao outro. Também são comuns tentativas de manipular o filho, tentando afastá-lo do outro cônjuge para atingi-lo. Divididos no fogo cruzado, os filhos se deparam não só com a tarefa de lidar com os efeitos da separação dos pais, mas também com sua condição de criança-bomba sacrificada na guerra entre os pais.
Um projeto de lei aprovado no Senado no último dia 26 faz uma torção na lógica vigente em relação à guarda dos filhos em casos de separação. A guarda compartilhada passará a ser a regra geral, buscando preservar o vínculo da criança com ambos os pais, bem como dividir as responsabilidades de forma mais equânime. Isso responde às formas atuais de parentalidade: o modelo da mãe-que-faz-tudo e do pai-que-visita-e-paga-pensão tem ficado para trás, junto com as figuras da mãe cuidadora e do pai provedor, que já não dão conta da realidade da vida familiar atual. A guarda unilateral, muitas vezes usada como instrumento de ameaça e disputa entre o casal, será concedida apenas se um dos pais abrir mão dela ou se a justiça decidir que um não é apto para desempenhar sua função.
A lei é um avanço significativo, embora nosso código civil siga a passos lentos os códigos da vida real dos cidadãos. Ela aponta, porém, a algo que as crianças nos dizem com seu sofrimento quando são privadas do convívio com um dos pais por pendências e imbróglios afetivos da separação. A lei certamente não solucionará as questões amorosas dos genitores e seus efeitos sobre os filhos, para o que não há prevenção ou cura a menos que se empenhem ativamente nisso. Porém, ao centrar-se na preocupação pelo bem-estar da criança, situa-a como sujeito a ser cuidado e preservado, e não um objeto a mais a entrar na partilha de bens. A guerra do amor pode muitas vezes virar um vale-tudo, mas valer-se do filho como arma para lidar com o desamor é uma estratégia na qual o maior ferido acaba sendo a criança.
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