
A Anistia Internacional é um farol contra o desrespeito aos direitos humanos num mundo em que eles são frequentemente pisoteados. Nessa toada, busca pôr os pontos nos is da indiferença e da violência planetárias, pingando-os também no Brasil ao lhe atribuir o maior índice bruto de homicídios. São pelo menos 56 mil mortes anuais, algo como a população de Taquara. O Relatório 2014/15 - O Estado dos Direitos Humanos no Mundo foi lançado na quarta-feira. O cientista político Maurício Santoro, da AI, em entrevista ao PrOA, manifestou a preocupação com a precariedade que leva o relatório a definir um "ano catastrófico":
Qual a maior preocupação da Anistia Internacional com o Brasil?
O aumento da violência. Nós classificamos a situação no Brasil como uma crise na segurança pública. Por quê? Porque temos uma quantidade de assassinatos no Brasil muito grande, de pelo menos 56 mil por ano. Para se ter uma ideia do que isso significa em termos internacionais, em números absolutos, o Brasil é o país onde mais se mata no mundo. Nenhum outro país tem tantos assassinatos.
Sempre foi assim?
Está piorando. Se a gente pegar desde 1980, temos um crescimento muito grande dessa taxa de homicídios. Ela cresce em quase 150%. Então, a gente vê por um lado que a economia do país melhorou, que a pobreza foi reduzida, que a desigualdade caiu, mas a violência aumenta.
A que se atribui isso?
Essa violência tem um perfil muito específico. Quem é assassinado no Brasil? Em grande medida, os jovens. Desses 56 mil assassinatos que mencionei, em torno de 30 mil são de jovens, sendo que, desses jovens, quase 80% são negros. Então, tem um componente de faixa etária e também uma questão racial e socioeconômica. Basicamente, os mortos no Brasil são os jovens negros, moradores de periferias ou de favelas.
Normalmente, por que isso ocorre?
A gente não tem dados para dizer quem foram os responsáveis pelos assassinatos. O máximo que se consegue é dizer como eles foram mortos. Em geral, com armas de fogo. Mas em torno de 92% dos homicídios brasileiros não são solucionados. Por isso, não temos como dizer quem matou. Ou seja, a quase totalidade dos homicídios no Brasil fica impune.
Essas pessoas que matam têm noção dessa impunidade e ficam à vontade para continuar?
Com certeza. A gente tem no Brasil uma situação contraditória. Temos por um lado uma quantidade muito grande de pessoas presas. Temos hoje mais de meio milhão de pessoas presas nos presídios brasileiros. Mas essas pessoas não foram presas por questões de homicídios. Em geral, elas foram parar na prisão porque cometeram algum roubo ou de furto, ou por crimes relacionados a drogas. Mas um crime muito mais grave, que é o assassinato, permanece impune. Então, claro que isso funciona também como um incentivo para esses criminosos.
Por que chegamos a esse perfil de vítimas?
Passa muito pela dificuldade do Estado brasileiro de fazer cumprir as leis, com um nível de negligência muito grande nas áreas mais pobres, onde faltam policiamento e serviços de infraestrutura adequados. Então, embora não possamos apontar uma causa precisa para esse problema, sabemos que há uma série de fatores que, no final da história, levam a níveis de violência muito elevados.
E, fora da América Latina, o terror de grupos como o Estado Islâmico e o Boko Haram incrementou a violência?
Sim. Chamamos muito a atenção para a ação desses grupos, que não são Estados, não são governos, mas controlam territórios significativos em países como a Síria, o Iraque e a Nigéria. Têm gerado uma enorme quantidade de atrocidades e de violência. A lista de crimes contra a humanidade que eles têm cometido é muito grande. Passa muito pelos ataques a populações civis, execuções de prisioneiros, torturas e escravização, com mulheres e crianças raptadas para fins de exploração sexual. Então, é um cenário muito grave. A gente chama a atenção para a resposta dos países, que tem agravado esse problema. A Nigéria tem reagido ao Boko Haram com uma ofensiva extremamente violenta, que, com frequência, brutaliza a população que o Estado deveria proteger.
O que vocês recomendam?
Recomendamos um tipo de esforço de solução que passa, evidentemente, pelo enfrentamento com esses grupos, que não são atores políticos legítimos, mas que tenha um compromisso dos governos, dos Estados, com a proteção das populações. Frisamos muito a questão dos refugiados, porque, como os civis são os principais alvos desses grupos, o resultado, com frequência, é que as pessoas simplesmente fogem. Há famílias inteiras que reúnem suas coisas e tentam sair desses países. Há dezenas de milhões de refugiados, sobretudo no caso da Síria, e isso vira uma crise de enormes proporções que acaba alimentando mais e mais extremismos.
Como se faria essa proteção?
Passa por várias condições. Nos casos dos países envolvidos diretamente nos conflitos, como Síria e Nigéria, a gente tem pedido para esses governos cumprirem suas obrigações: protejam as populações civis dos ataques desses grupos armados e dos abusos cometidos pelas forças de segurança dos Estados. No caso dos países que estão fora da zona de conflito, mas que de algum modo podem exercer um papel na sua resolução, como os Estados Unidos e a União Europeia, pleiteamos que eles aceitem um número maior de refugiados. Em grande medida, esses países têm se mostrado omissos diante dessas crises humanitárias, e isso agrava a situação. Quem está segurando o fardo são os países vizinhos, em desenvolvimento, com problemas graves de economia e infraestrutura.
O EI usa muito a difusão de vídeos. O que se faz? Evita-se ver?
Esses vídeos são usados de várias maneiras. Primeiro, como instrumento de propaganda política, é uma maneira de eles mostrarem o quão poderosos são. Em segundo lugar, é uma forma de recrutamento. A maneira de se comportar em relação a esses vídeos depende de cada um. Tem gente que quer ver para ter noção do nível de violência do que está ocorrendo. Mas, antes de compartilhar, é importante pensar: aquela imagem de algum modo favorece esses grupos.
Como isso atrai um jovem?
Depende muito da situação. Os sírios e iraquianos que se juntaram ao EI, em grande medida, vêm de grupos que têm sido muito perseguidos nos últimos anos por conta das guerras sectárias, sobretudo nos conflitos entre sunitas e xiitas. Basicamente, é um processo de brutalização de quem quer se ver do lado oposto, quer se vingar do inimigo. Agora, há também os extremistas que estão ali porque têm uma ideologia político-religiosa de achar que é a maneira correta de lutar.