
Escritora, autora de A Vez de Morrer (Companhia das Letras)
Há dois pecados imperdoáveis para um escritor hoje: ter uma vida sem grandes dramas e escrever sobre questões consideradas menores ou abstratas. O escritor que não teve grandes problemas na vida, ou até mesmo o que conseguiu se sair bem apesar de circunstâncias adversas (externas ou internas), é visto como menos interessante. Aquele que decide escrever sobre qualquer coisa que não as questões do momento - às vezes, da forma mais literal possível - é acusado de viver na torre de marfim.
As "questões do momento" variam ao sabor das marés históricas; hoje em dia, escrever sobre angústias existenciais está out, mas depois do fim da II Guerra era matéria de best-seller. Até há alguns anos, era impossível obter respeito no Brasil sem tratar da desigualdade social ou da repressão política em seu livro; agora, o novo toque de Midas parece ser o feminismo. Nenhum problema com o tema; refiro-me só à repetição de uma fórmula.
A pressão sobre o escritor é grande. Ele ou ela sabe que se espera dele que inclua lances dramáticos na própria biografia e que inclua "atualidades relevantes" em sua escrita. Como se fosse possível simplesmente incluir o que se espera de um escritor. E como se, mesmo existentes, esses traços biográficos devessem ser necessariamente explicitados e explorados. (E há quem o faça: consciencioso empresário da própria imagem, observada quase que à distância pelo próprio.)
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Parece também que o lance dramático vale mais quando é divulgado à revelia do autor. Imaginemos três variáveis principais: o autor pode sentir vergonha (de ser alcoólatra, trair o cônjuge ou ter depressão), ter medo da reação adversa do público (segue uma religião ou tem inclinações sexuais diferentes da maioria) ou pode ser só uma pessoa reservada. Ou, o que torna tudo mais complexo, ele pode ser mais de uma dessas coisas ao mesmo tempo. Em qualquer combinação entre esses três casos, o valor simbólico da revelação deste segredo é muito maior. Por isso o autor recluso ainda tem uma aura tão forte ao seu redor. Quando se consegue uma foto ou declaração dele, por prosaica que seja, ela vale mais por sua raridade. Cabe um paralelo com o mito neurótico sobre a mulher "difícil", aquela que não faz sexo "com qualquer um", e, portanto, é mais "valiosa" do que as outras. É fácil ver como esse valor pode ser inflacionado artificialmente. Basta a mulher "se fazer de difícil", muitas vezes contrariando os próprios desejos, com o intuito de passar essa imagem que atrairá "um bom partido". Um autor pode pensar que se afastar do burburinho literário irá valorizar seu passe (e estará enganado).
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Os paralelos com o caso de origem são muitos e muito engraçados. Ninguém entenderia um autor que desistisse de ser recluso no fim da vida; ele estaria se desvalorizando! O autor que não se importa de ir a eventos, mesmo que seja uma pessoa reservada, é tratado como "mulher fácil": é pego pelo braço, socialmente forçado a se sentar à mesa com desconhecidos e/ou desafetos, cortejado com presunções esquisitas, requisitado a fazer piruetas bem específicas para a câmera, de preferência citando o nome dos patrocinadores... Afinal, "se não queria, que ficasse em casa"! E de repente ele pensa justamente: "nossa, acho que vou ficar em casa um pouco, dar um tempo nesses eventos". Aí é tratado como quem está "se fazendo de difícil" ou "ficou mascarado", e os convites para artigos e textos, o que realmente lhe interessa, começam a escassear. Ele começa a aceitar um ou outro convite para evento só para poder continuar escrevendo, ou melhor, publicando e sendo lido.
E, se você for uma autora jovem e mulher, imagine a confluência de neuroses! A imagem de "boa menina leitora" fará desconhecidos chegarem oferecendo trabalhos sem remuneração; a imagem de "escritora fatal" fará desconhecidos presumirem sua disponibilidade (e estranharem quando você protesta); a imagem de "jovem alternativa e rebelde" fará com que nunca seja levada a sério - motivo: você não é "divertida".
E a imagem não é uma questão do que você projeta, e sim do que projetam em você. Você é tratada como tela em branco para fantasias de pessoas que não querem realmente conhecer o autor, tampouco leram o que você escreveu; trata-se de uma admiração oca, preenchida com o viés do outro. E os diálogos são tão artificiais como os de uma conversa humano-bot. Diálogos que só explicitam, ironicamente, o viés desse bot. De um ponto de vista literário (o meu viés), tais diálogos, de tão repetitivos, perdem o efeito e deixam de chocar ou comover.
"Sumi" durante algum tempo do "circuito literário" precisamente por causa disso: quando ia a algum evento, não tinha estímulo algum para voltar - pelo contrário. Demorou um bom tempo até eu entender como os estereótipos me atrapalhavam, e mais outro tempo até eu conseguir verbalizar esse impasse. Percebi também que é um mal que afeta outras colegas - e também colegas homens. E, quando voltei a frequentar eventos, foi não só porque "queria publicar e ser lida", mas também pela oportunidade de viajar, ver colegas de que gosto e conhecer, quem sabe, novas pessoas e histórias. Não digo apenas histórias e pessoas "boas"; diria "interessantes". Afinal, a trama da vida tem que ter conflito. Mas sempre o mesmo conflito torna-se cansativo.
O que dá para fazer em cima disso? Fico pensando se a imagem que algumas pessoas fazem da literatura nacional é a de um navio que a presença da mulher faria afundar. Estarei sendo paranoica? Ou mais alguém tem essa mesma impressão?
Mais do que dizer "leia/publique mulheres" (iniciativa louvável), é bom recordar como os estereótipos subjacentes à representação da mulher engessam a participação delas numa tentativa de vida literária nacional. Isto é: com quem elas vão sentar? Só com outras mulheres? Vou ser chamada para mais uma mesa sobre O Feminino na Literatura? Já batalhei para mudar o tema de mesas assim, e consegui. Já batalhei para mudar capas que considerei "de mulherzinha", e consegui. Mas que essas batalhas sejam públicas. Gostaria de ser chamada para mais debates mistos, ao redor de temas mais transversais e, por que não, polêmicos. Muitas escritoras brasileiras têm feito bonito nesse navio, ainda que no papel de clandestinas.