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Ibrahim se lembrava sempre da mãe quando uma das faxineiras o xingava. Passou a ter dificuldade para dormir, atravessava os dias com uma bola de culpa na garganta. Era cada vez maior o número de mulheres que lhe telefonavam chorando - e todas criavam seus filhos da mesma forma como sua mãe o havia criado: com o dinheiro das faxinas.
- Pedi para sair da empresa. Me cortava o coração, não conseguia lidar com aquilo - recorda Ibrahim Cesar, 29 anos, fundador de uma startup que surgiu em 2013, em São Paulo, reunindo em uma plataforma online profissionais de limpeza e pessoas que precisavam do serviço.
Era uma espécie de Uber da faxina, um sucesso. A profissional mais próxima do cliente, com boa avaliação de outros usuários, ganhava prioridade para executar o trabalho - o que garantia um deslocamento mais curto para as diaristas e menos gastos com transporte, além de um serviço que os contratantes anteriores já reconheciam como qualificado.
Só que, lá pelas tantas, ocorria de uma faxineira cancelar o serviço porque o filho estava doente. Não tinha conversa: era punida sem dó pelo algoritmo do sistema, que deixava a mulher sem trabalho por uma semana. Diaristas que moravam em bairros pobres, distantes do centro, sofriam com a falta de trabalho porque havia pouquíssima demanda na região.
- Nós vendíamos o sonho de que a renda delas aumentaria, de que suas agendas estariam sempre cheias. Mas, quando isso não acontecia, elas nem podiam nos cobrar nada: o contrato nos isentava de qualquer vínculo empregatício - conta o arrependido Ibrahim.
A história ilustra bem os dilemas de um novo modelo econômico que, até agora, tem no Uber seu representante mais controverso. À margem de regulações do mercado e da legislação trabalhista, a economia compartilhada aproxima com força inédita consumidores e fornecedores, reduz a burocracia a níveis microscópicos e, não há dúvida, tende a oferecer serviços melhores, já que tudo é baseado na reputação dos usuários.
- Hoje pode parecer exagero, mas estamos vivendo o início de uma revolução sem precedentes na história humana. Daqui a cinco anos, com tantas alterações na forma de consumir e trabalhar, não vamos reconhecer o mundo da forma como existe hoje - garante o economista Oswaldo Oliveira, uma das maiores autoridades do país em economia na web.
Em vídeo, conheça um app de economia compartilhada de Porto Alegre:
Talvez você se convença da previsão de Oliveira ao longo da reportagem. Há poucas semanas, o economista e diplomata Marcos Troyjo, professor de Políticas Públicas da Universidade Columbia, em Nova York, viu a preocupação estampada no rosto de executivos de um grande banco brasileiro. O pavor devia-se ao crescimento do crowdbanking em países como Inglaterra e Estados Unidos.
Trata-se de uma plataforma (um site ou aplicativo para smartphone) em que as pessoas emprestam dinheiro para outras a uma taxa equivalente à metade da cobrada pelos bancos. Na primeira transação, o usuário tem direito a solicitar um valor pequeno, mas, conforme cresce sua reputação de bom pagador, os pedidos de empréstimo podem ser mais gordos.
- É natural que os bancos agora se apeguem a legislações para tentar barrar esse movimento. Os sindicatos de taxistas fazem a mesma coisa com o Uber, e as grandes redes hoteleiras da Europa também se empenham para inviabilizar o Airbnb (aplicativo que permite às pessoas alugarem sua própria casa ou apenas um quarto para turistas, que já oferece mais de 1 milhão de acomodações em 192 países) - afirma Troyjo. - Mas a economia compartilhada não tem volta: ela vai reformatar e, em alguns casos, até destruir leis e códigos de Direito que foram pensados em outro momento histórico.
Em resumo, pouco adianta jogar na ilegalidade empresas como o Uber, a exemplo do que se vê no Brasil. O presidente do Instituto Brasileiro de Direito Digital, Frederico Meinberg Ceroy, lembra que a guerra travada pela indústria fonográfica contra o Napster, programa de compartilhamento de músicas, provou que "uma aparente vitória legal foi, na verdade, uma derrota na prática, já que o compartilhamento de músicas aumentou de forma alarmante".
- É claro que uma regulação do Estado é necessária, mas este é um novo modelo de negócios que precisa de um novo padrão normativo. Se impusermos a essas empresas regulações trabalhistas e tributárias tradicionais, elas vão se tornar empresas tradicionais. E vão perder as vantagens que a sociedade já percebe - avalia Leandro Novais e Silva, professor de Direito Econômico da Universidade Federal de Minas Gerais e colaborador do blog Educando seu Bolso.
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Embora os principais empreendimentos de economia compartilhada venham surgindo de pequenas startups ao redor do mundo, grandes corporações já farejam a tendência. A Google, dona do aplicativo Waze - um GPS incrementado no qual os usuários fornecem informações sobre o trânsito em tempo real -, testa neste momento em Israel um sistema de caronas colaborativas. Quer sair de casa? Basta acessar o Waze e informar onde está e para onde quer ir, e um alerta aparecerá no celular dos motoristas que passarão pela mesma rota. Aí é entrar no carro do novo amigo e pronto: carona grátis. Mas e o perigo, e os assaltos, e os sequestros, e os estupros?
- A economia compartilhada floresce melhor nas sociedades em que as pessoas confiam umas nas outras. A insegurança no Brasil trava um pouco essa relação, mas é algo que mais cedo ou mais tarde também será corriqueiro aqui - afirma Gil Giardelli, professor do Centro de Inovação e Criatividade da ESPM de São Paulo, lembrando sempre que a reputação das pessoas, com base em notas atribuídas pelos usuários, é um pilar da economia compartilhada.
Essa proximidade entre todos, a certeza crescente de que o mundo inteiro está conectado em uma só rede, não só derruba a necessidade de intermediários como tende a impactar a maneira de consumir que hoje conhecemos. O consumo deixa de ser a busca pela posse: transforma-se na busca pelo acesso.
- Uma empresa gigantesca como a Google criando um sistema de caronas, você tem ideia do que isso representa para a indústria automobilística? Se uma a cada duas pessoas deixarem de comprar um carro para se deslocar por meio de caronas, será uma queda de 50% nas vendas. Isso impactaria também o mercado de seguradoras, de oficinas mecânicas, de postos de gasolina, de pedágios. Tudo cairia em 50% - analisa o economista Oswaldo Oliveira.
Para se ter uma ideia, a consultoria multinacional PricewaterhouseCoopers prevê que a economia compartilhada movimente em 2025, no mundo todo, algo em torno de US$ 335 bilhões - o PIB da Dinamarca. Serão milhões compartilhando roupas, joias, jantares, vagas para estacionar, residências, carros, bicicletas, aulas de inglês, de violão, de teatro.
- Tudo isso é muito bonito, mas não dá para negar que teremos traumas - alerta o economista Marcos Troyjo. - Haverá injustiças, sim, e muita gente perderá a segurança que encontrava em sua profissão.
É o caso das faxineiras da startup de Ibrahim Cesar, que ligavam chorando para reclamar. Como elas - e como os taxistas, os banqueiros, os hoteleiros e o fabricantes de carros -, milhões de pessoas vão gritar por direitos trabalhistas e resistir ao que alguns já chamam de pós-capitalismo, outros de capitalismo da gentileza, outros de Era Compartilhada.
- Podemos e devemos minorar a dor de todos, ainda mais de gente humilde como aquelas diaristas. Mas dizer que todas as garantias de hoje se manterão, olha, seria uma falácia - conclui Leandro Novais e Silva, professor de Direito Econômico da UFMG.
Uber Kontroverse
- O aplicativo Uber está disponível em 58 países. No Brasil, onde está disponível desde o ano passado, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte são as cidades que dispõem do serviço, basicamente um sistema particular de transporte.
- Em muitos países, a informalidade do serviço provoca protestos dos transportadores que se submetem às exigências legais para transporte de passageiros. Não tem sido diferente no Brasil. Tanto em São Paulo quanto no Rio foram realizadas há duas semanas grandes manifestações de taxistas contra o serviço.
- No Rio, depois dos protestos, foi intensificada a fiscalização de carros particulares - no dia 28, oito carros foram apreendidos no Aeroporto Santos Dumont, dois deles vinculados ao Uber.
- Em São Paulo, a prefeitura informou, após as manifestações, que o transporte pelo Uber não é permitido na cidade, e que 44 carros foram apreendidos desde agosto do ano passado.
SEM INTERMEDIÁRIOS
HOSPEDAGEM
Airbnb
Gente do mundo todo aluga casas, quartos e até castelos para turistas, que pesquisam no aplicativo os locais onde pretendem se hospedar.
EMPRÉSTIMO DE DINHEIRO
LendingClub
Espécie de banco informal nos Estados Unidos: pessoas comuns emprestam dinheiro com taxa menor do que a bancária. Vale a reputação do bom pagador.
TROCA DE TEMPO
Bliive
A moeda é o tempo, não o dinheiro. Você oferece 10 horas de aula de inglês, por exemplo, e ganha 10 horas para fazer aula do que quiser com outro usuário - culinária, piano, artes etc.
GASTRONOMIA
EatWith
Pessoas que gostam de cozinhar - e querem faturar com isso - recebem outras em sua casa para uma refeição. O anfitrião define o número de participantes, e todos se conhecem na hora de comer.
GARAGEM
ParkShare
No ParkShare, em operação só nos EUA, é possível alugar a vaga de seu prédio nas horas sem uso para quem foge do preço alto de estacionamentos.
MODA E ARTESANATO
Etsy
É possível comprar roupas, joias, móveis e acessórios de pessoas que vivem em todos os cantos do mundo. Artistas vendem produções artesanais na plataforma.
SERVIÇOS GERAIS
GetNinjas
A plataforma conecta pedreiros, pintores, babás, cozinheiras, acompanhantes de idosos - todos avaliados por quem já os contratou - a quem precisa dos serviços.
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