
*Antropóloga e historiador. Ambos docentes da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)
Em aula magna celebrada para marcar os 80 anos da UFRGS, Sebastião Salgado contou que adoeceu após temporada em Ruanda, quando olhou de perto os impactos da crueldade humana registrando pilhas de cadáveres vítimas de genocídio. Nos últimos dias, memes nas redes sociais comparavam a foto do menino afogado sírio com a de crianças Guarani-Kaiowá alvejadas na mesma semana por tiros de borracha disparados por fazendeiros em Mato Grosso do Sul, região que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro nomeou como a "Faixa de Gaza do Brasil" e "onde não há mais mato". Na noite de 03 de setembro último, houve novo ataque em Guayra Kambiy, a 30 quilômetros de Dourados (MS).
A violência a que estão submetidos os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul é resultado de um processo histórico recente, de desumanização e desrespeito à legislação brasileira, iniciado no governo de Getúlio Vargas. Os mais velhos são testemunhas vivas da invasão de suas terras. Em 1943, quando o governo Vargas criou a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), os Kaiowá viviam em suas terras de maneira tradicional, ou seja, em pequenas comunidades com até 100 famílias articuladas por redes de relações socioculturais e ambientais. Como parte do programa "Marcha Para o Oeste", o governo Vargas incentivou a invasão dessas terras por colonos e fazendeiros.
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As colônias se transformaram em fazendas; a floresta, em pasto e lavoura; e os Guarani-Kaiowá foram sendo expulsos de suas terras e obrigados pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) a se assentarem em oito pequenas reservas, processo denominado pelo historiador Antonio Brand como de "confinamento". Os Kaiowá dizem que foram "enchiqueirados", comparando seu destino com o cerco realizado pelos fazendeiros para conter porcos. As reservas atendiam ao propósito de liberar as terras para as fazendas e manter os indígenas sob controle. O resultado histórico dessa política de governo resultou em aldeias superpopulosas, onde não há espaço suficiente para viver. Os Guarani passaram a viver acuados, cerceados e violentados.
Muitas comunidades resistiram e optaram por retornar às terras tradicionais; porém, pela morosidade e descaso do governo, o que resta é tentar sobreviver em barracos feitos de lona de plástico entre a cerca das fazendas e o asfalto das estradas por onde escoam a produção de milho, de cana de açucar e soja, com pouco acesso à água - que, ainda por cima, está poluída por agrotóxicos. Os barracos compõem imagens que bem ilustram a contradição brasileira entre miséria e riqueza; de um lado, a miséria ambiental criada pela monocultura agrícola regada de pesticida gerando números positivos em balanças comerciais; e de outro, a riqueza cosmológica do povo Guarani e Kaiowá sendo reduzida à pobreza e à fome.
Desde o início dos anos 1980, quando os Guarani-Kaiowá iniciaram o processo de retomada dessas terras, passaram a ser alvos de pistoleiros contratados pelos fazendeiros. A inércia do governo federal em cumprir o que determina a Constituição Federal de 1988 só aumenta a tragédia e deixa campo aberto para que a violência se amplie, a exemplo do assassinato de Semião Vilhalva, ocorrido no dia 29 de agosto em Tekoha Ñande Ru Marangatu, no município de Antônio João - a 300 quilômetros da capital Campo Grande. É o mesmo local onde, em 1983, foi assassinado Marçal de Souza Tupã y, liderança indígena conhecida internacionalmente por ter pedido ajuda ao papa João Paulo II.
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Este ano, Eliseu Guarani-Kaiowá encontrou-se com o papa Francisco e entregou uma carta onde se lê: "Os Guarani-Kaiowá vivemos no estado do Mato Grosso do Sul, enfrentamos as piores condições de vida, sofremos a violência mais profunda e a situação de maior vulnerabilidade social e cultural no país. Somos cerca de 45 mil pessoas e vivemos no exílio, fora de nossas terras, que se encontram invadidas por fazendeiros que delas nos expulsaram em passado recente com o apoio do Estado brasileiro".
Apesar de homologada em 2005 pelo presidente Lula e reconhecida como terra tradicionalmente ocupada, os Guarani-Kaiowá não podem ocupá-la pois o ministro do Supremo Tribunal Federal à época, o gaúcho Nelson Jobim, suspendeu os efeitos do decreto presidencial. Passaram-se 10 anos, e o STF ainda não julgou novamente o caso. Somado aos assassinatos promovidos por fazendeiros e com cumplicidade dos poderes públicos, que não os impedem e não demarcam terras, há novas tragédias, como os suicídios: somente em 2013, houve 73 casos, na maioria de adolescentes indígenas.
A história da ocupação de Mato Grosso do Sul contraria o que determina a legislação brasileira. A Constituição de 1934 (Art. 154) estabelecia: "será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados (...)". A Constituição de 1946 ampliou esses direitos, mesmo assim o próprio governo federal a ignorou completamente. Com esse contínuo desrespeito, o governo abriu caminhos para que a violência praticada impunemente pelos fazendeiros se efetivasse e passasse a fazer parte da vida cotidiana. A mesma dura crueldade que fotografias como a do menino sírio morto na praia turca ou as de Sebastião Salgado tentam, em vão, nos ensinar a olhar e a sentir.
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