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*Professor Titular de Direito Constitucional da UFRGS e da FMP
No atual quadro de degenerescência política e de recessão (depressão?) econômica, avultam iniciativas, como cassação de mandato parlamentar e de "impeachment" da presidente da República, que podem parecer colocar em questão a estabilidade democrática da nação, duramente conquistada.
A deslegitimação da classe política como um todo tende a acentuar-se. Independentemente de partidos políticos e de projetos políticos, a corrupção transformou-se praticamente num modus vivendi ou num modus operandi da classe política, atestando as relações espúrias existentes entre setor público e setor privado, em prejuízo da maioria da população, sobrecarregada por uma carga tributária excessiva e serviços públicos deficientes. "Pela 1ª vez, corrupção é vista como maior problema do país, diz Datafolha", essa a manchete da Folha de S.Paulo no domingo passado. A distinção, para não dizer o divórcio, entre Estado e Sociedade Civil parece igualmente aprofundar-se.
Valeriano Costa: "É um perigo cassar um presidente sem consenso"
Já diagnosticou Rui Barbosa: "República? Isso não! Nem de longe. Reprivada. O Brasil não é uma República: é uma Reprivada; privada em todos os sentidos. Não existe o vocábulo? Pois força a cunhar o neologismo. Na República, a administração é coisa do público. Na Reprivada, é coisa de privança, é domínio dos privados, é logradouro privativo dos que privam com os açambarcadores do patrimônio comum, e exercem privadamente a tutela da nação, reduzida à pupilagem. Entregue, assim à absorvência do interesse privado, sobreposto em absoluto ao interesse público, a República se desnaturou à Reprivada".
Antiga, mas ainda presente lição. A luta pela República talvez seja a grande plataforma política da atualidade para o país. República no sentido do princípio, conforme entendia Montesquieu, que inspira e faz agir o regime político democrático (em outros termos, a prevalência, na ordem política, do interesse público sobre o interesse privado e, respeitando a etimologia latina da expressão, a ideia de coisa pública ou de coisa comum, enfim, a perspectiva do bem comum, portanto o contrário da Reprivada).
Para começar a reverter o quadro, a recente reforma ministerial revelou-se pífia, para dizer o mínimo. Faltaram discernimento, grandeza, abertura, entre outros atributos. Faltou finalmente o que na realidade diferencia um estadista de um político comum. Urgia uma ampla interlocução política e social, compondo um ministério com personalidades e políticos legitimados, moral e politicamente, perante a sociedade - independentemente de serem membros deste ou daquele partido, numa tentativa de resgate de referenciais mínimos para uma prática efetivamente republicana. Mas isto feriria seguramente interesses corporativos... Essa a realidade do denominado presidencialismo de coalizão, eufemismo para um presidencialismo de corrupção.
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De qualquer forma, a renovação de nossa vida política exige, antes de tudo, respeito aos procedimentos.
As imunidades parlamentares, as denominadas irresponsabilidade (Artigo 53, caput, da Constituição) e inviolabilidade (Artigo 53, §2º, da Constituição) não são privilégios atribuídos ao parlamentar, mas instrumento de independência do próprio Legislativo. Análogas, por exemplo, às garantias da magistratura: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio, instrumento igualmente de defesa da independência do Judiciário.
O parágrafo 2° do Artigo 53 da Constituição permite a prisão de parlamentar apenas na hipótese de flagrante de crime inafiançável. No caso do senador Delcídio Amaral, o entendimento da Segunda Turma do STF foi no sentido de que se configurava flagrante pelo fato de se tratar de crime de organização criminosa, de crime continuado. Dúvidas maiores poderia haver com relação à condição de crime inafiançável. No particular, aplicou-se o Artigo 324 do Código de Processo Penal, o que pode suscitar algumas controvérsias jurídicas. De qualquer maneira, independentemente dos questionamentos possíveis com relação à prisão, os fatos referidos como de responsabilidade do parlamentar parecem corroborar o que se disse com relação ao diagnóstico de nossas práticas políticas.
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Com relação ao crime de responsabilidade, ao impeachment de Presidente da República, antes de tudo, convém destacar que o procedimento por crime de responsabilidade configura-se como instrumento próprio do sistema presidencialista de governo. Nesse sentido, não é mecanismo análogo à responsabilidade política do Executivo perante o Parlamento (Legislativo), próprio do sistema parlamentarista. No sistema presidencialista, o presidente governa por tempo certo (no nosso caso, mandato de quatro anos), diferentemente de um sistema parlamentarista clássico, em que o chefe de governo, o primeiro-ministro, pode a qualquer tempo ser afastado através da aprovação pelo parlamento de um voto de censura ou de uma moção de desconfiança. Em outros termos, o impeachment não é instrumento hábil para questionar ou contestar a política governamental, mas medida excepcional, com fundamento constitucional, para afastar um presidente da República que tenha cometido crime de responsabilidade, por ato decorrente ou próprio das atribuições presidenciais. Acrescente-se que se pode tratar de ato comissivo ou omissivo, tal como estatui a Lei 1.079 de 1950.
O crime de responsabilidade possui uma natureza híbrida, não exclusivamente criminal, mas político-criminal. Talvez, por isso mesmo, tanto a previsão constitucional, como a regulamentação legal sejam por vezes imprecisas. Entretanto, há de se identificar claramente uma relação de causa e efeito entre um ato ou uma omissão presidencial e a presumida prática de crime de responsabilidade, sob pena de atingirmos a soberania popular.
O processo democrático é um processo longo, histórico, que, é verdade, exige empenho e persistência, mas também cautela e moderação.
Editorial: Hora de responsabilidade
Finalmente, onde estamos? Não houve propriamente um passado áureo que nos sirva de exemplo. A Reprivada tem sido em grande parte nosso paradigma histórico. Mas hoje, ao contrário, há uma consciência pública mais aguçada e crítica, meios de comunicação mais investigativos e questionadores, órgãos de investigação e de responsabilização, como Política Federal, Ministério Público, Judiciário, tribunais de contas, entre outros, mais atuantes na preservação do interesse público e social. Sem falar na existência de uma Constituição de inspiração republicana, cada vez mais efetiva, e de uma legislação administrativa, penal e processual renovada. Enfim, e em que pesem as mazelas de nossa vida política, que são muitas, o país apesar de tudo avança e progride do ponto de vista político, cabendo fortalecer a experiência democrática, sem qualquer apelo a soluções salvacionistas.