Porto Alegre

Colunistas

Francisco Marshall: a partir das cinzas

A disputa entre capitalismo e comunismo, ou entre liberalismo ou socialismo (e outros), é secundária diante da permanência dos fundamentos incubados no Brasil colonial

Eu bem queria falar de coisas lindas, mas acho que antes de nos erguermos das cinzas deste sacrifício teremos que reafirmar a democracia, se a queremos mesmo, e como faremos

"Se houver guerra civil, será exilado o cidadão que não tomar partido." Na Atenas de Sólon (150 anos antes de Péricles), não havia eleições, nem uma assembleia de cidadãos; Sólon a instituiu (em 594 a.C.), e viria a ser o órgão central da democracia ateniense, a eclésia. A evolução do regime inventou instituições que contemplavam rotatividade, sorteio e controle público, combateu a desigualdade e com isso ofereceu à humanidade a melhor referência de regime político, a isonomia, também chamada democracia. Ainda queremos conhecer, pensar, atualizar e praticar este modelo de regime político? Desejamos e podemos ponderá-lo com a história do mundo e do Brasil, assumi-lo, defendê-lo?

Em minha formação no Curso de História da UFRGS, nas aulas da profa. Dra. Helga I. L. Piccolo, aprendi que a verdadeira natureza do regime político brasileiro é a de uma oligarquia. A disputa entre capitalismo e comunismo, ou entre liberalismo ou socialismo (e outros), é secundária diante da permanência dos fundamentos incubados no Brasil colonial, reproduzidos e agravados na era imperial, mimetizados e expandidos desde 1889, com espasmos de saúde republicana e muitas esperanças e desencantos da classe média. Para piorar, a ilusão de prosperidade e segurança vinda da ditadura ainda alimenta estúpidos no desejo de retorno à autocracia, e no desdém à democracia. No andar de cima, bufões em trajes cafonas fingem crer que certa formalidade é prova de democracia, exatamente no ato em que a castigam e consumam a pior catástrofe de qualquer regime, a tomada do poder. Seguimos sendo Oligarquia Centralizada em Brasília, algo muito diferente de República Federativa do Brasil.

Esses dias, disse-me um motorista: "Não sei o que se passa, não me interessa, nem compreendo". Ele não era um dos milhões de brasileiros que ora sentem ultrajado seu direito de eleitores; parecia, sim, indiferente, e era um homem médio, em uma grande cidade, conversando com gente com eu. A regra de Sólon o exilaria. O voto ainda é obrigatório, mas pesquisas indicam que 80% dos brasileiros não sabem por que Dilma foi afastada, e percentual maior não lembra em quem votou nas últimas eleições. Isto não é uma nação, é um empório de ambições e ideologias em que um Estado débil é disputado sem pudor ou responsabilidade, e a base da opinião pública ainda é formada por uma massa incapaz de compreender e viver a política. Seguramente nos falta educação de base, aquela que oferece discernimento e responsabilidade para todos (pobres e ricos), e que permite que haja sensibilidade política independentemente da classe social. Não custa repetir: precisamos revolucionar a educação, abandonar cacoetes anacrônicos, inverter orçamentos públicos em prol da escola e dos recursos educacionais (museus, parques, rádio e TV, arte e cultura educativos) e esperar para ter frutos. Por ora e até lá, amargamos os frutos da ignorância e sabemos que as urnas ainda premiarão a insensatez, por anos, salvo lapso imprevisível da fortuna.

Hoje todos devemos sentir algo pela democracia brasileira; luto ou esperança (?), isto vem de um parto muito doloroso do qual a nação sai dividida e angustiada. Para piorar, eis a crise, que ora se agrava – e apenas maliciosos anunciam nova era econômica, quando crescem a inflação, o desemprego, a recessão, o endividamento, o descontrole dos gastos e a leniência com a corrupção. Será que a soma dos desafios não é maior do que o Brasil atual? Desculpem, leitores, eu bem queria falar de coisas lindas, mas acho que antes de nos erguermos das cinzas deste sacrifício teremos que reafirmar a democracia, se a queremos mesmo, e como faremos, pois como está, não deu, não dá, não dará.

* Francisco Marshall escreve mensalmente no Caderno DOC.

Leia mais colunas de Francisco Marshall


GZH faz parte do The Trust Project
Saiba Mais
RBS BRAND STUDIO

Esporte e Cia

00:00 - 05:00