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Julio Reny é um homem de sorte. Sim, teve problemas na vida, deve ter ainda, mas quem não tem? É um homem de sorte por chegar aos 35 anos de carreira, olhar para trás e ver que tudo o que fez, certo ou errado, não foi em vão. Pelo contrário, poucos têm tanto reconhecimento dos próprios colegas. De Edu K a Carlos Eduardo Miranda, passando por Carlos Gerbase, Frank Jorge, Humberto Gessinger e muitos mais, todos o respeitam como um artista único, de importância central na nascente cena roqueira dos anos 1980 em Porto Alegre. O jornalista Cristiano Bastos diz que já em 2001, quando conversou com ele pela primeira vez, para o livro Gauleses irredutíveis – Causos e atitudes do rock gaúcho, se sentiu em frente a um "vulto histórico". Suas canções têm personagens amargos e solitários, ele gosta de se considerar um "loser", um "outsider".
Julio está nos seminais filmes Deu pra ti anos 70 e Verdes anos, liderou três ou quatro bandas, teve programas de destaque na rádio Ipanema, gravou cinco discos solo e três com os Cowboys Espirituais, teve até publicada sua biografia Histórias de amor & morte. Um cara assim não se pode considerar um perdedor. Normalmente se diria que é um artista de sucesso. Ok, não ficou famoso no Brasil, não vendeu milhares de discos, mas quantos músicos do Rio Grande do Sul conseguiram? Julio Reny é um caso de sucesso que não se mede com números e sim com significação. Talvez faltasse um DVD para reunir parte de sua história musical. Não falta mais: em 2014, quase simultaneamente às entrevistas com Cristiano Bastos para a sua biografia (editada em 2015), ele gravava no estúdio da Marquise 51 o DVD Julio Reny & Os Irish Boys, enfim lançado este ano.
Com direção e roteiro de Lucas Hanke, o DVD não tem firulas técnicas, apenas alguns depoimentos, e o essencial, a verdade nua: no estúdio/bar, sem público, Julio com o violão entre os ótimos Oly Jr. (guitarra), Guilherme Wurch (baixo) e Marcio Camboim (bateria). Uma câmera fixa e duas para closes. Importam as palavras, o sentimento, o som, os amigos. São 17 canções de várias épocas, entre elas Amor e morte, Não chores Lola, Cão vagabundo, Cine Marabá, Expresso Oriente, Mil noites, Uma tarde de outubro de 73 e, de Márcio Petracco/TNT, O mundo é maior que o teu quarto. Com participação de Nei Lisboa, dele, Paisagem campestre; com Piá, Frank Jorge e Petracco, O jovem cowboy; com Jimi Joe, dele, Sandina; e com Tchê Gomes, Lucas Hanke, Santiago Neto e King Jim, Você é tudo que eu quero, de Bebeco Garcia/Garotos da Rua.
Simples assim, Julio: mesmo que não reconheça, você é um vencedor.
JULIO RENY & OS IRISH BOYS
DVD, Marquise 51, R$ 34,90 em marquise51.tanlup.com.
Dudu Sperb: de Cole Porter para o Brasil
Em atividade desde 1988, Dudu Sperb personifica algo raro na música brasileira mais ou menos recente: o cantor-cantor. E reafirma isso a cada trabalho, com foco em artistas como Chico, Elis e Caetano, e em projetos que mesclam canções a partir de um conceito. Depois de trabalhar com músicos como Toneco da Costa, Vagner Cunha e Luís Mauro Filho, no show So in love, que deu origem a este quarto álbum e que reúne as duas ideias, ele se associa ao superb pianista Michel Dorfman, cuja carreira teve início na mesma época.
O ponto de partida é a obra de Cole Porter, ícone do songbook norte-americano, e o diferencial é conectar suas músicas com as de autores brasileiros de diferentes gerações. Exemplo: Easy to love e Último desejo (Noel Rosa), ambas compostas nos anos 1930 e narradas na primeira pessoa, falam de amor. Delicada, sutil, às vezes quase minimal, com graves exatos para o inglês (muito bom), a interpretação de Dudu dá ares próprios às canções eternas. E olha que voz e piano, ainda mais nesse nível, não é fácil.
No roteiro, Night and day, Miss Otis regrets, I love Paris, Begin the beguine, Noturno Copacabana (Guinga/Fracisco Bosco), Valsa de Eurídice (Vinicius de Moraes), Renata Maria (Ivan Lins/Chico Buarque), Povoado das águas (Antonio Villeroy/Bebeto Alves/Gelson Oliveira/Nelson Coelho de Castro). Um must! Só me pergunto, vendo que o piano foi gravado em 2014 e as vozes em 2015/16: por que não gravaram juntos?
SO IN LOVE
De Dudu Sperb e Michel Dorfman
Independente/ Maximus, R$ 29 em média, na Palavraria e na Bamboletras, ou pedidos para sperbprod@gmail.com.
CADA QUAL COM SEU ESPÍRITO
De Raul Boeira
Nos anos 1970, havia em Passo Fundo um “clube da esquina” formado por Alegre Corrêa, Dudu Trentin, Raul Boeira e outros. Todos ganhariam o mundo, exceto Boeira, que se tornou funcionário público e uma referência para músicos visitantes de todo o país. Desde a primeira canção, demoraria 30 anos para gravar o primeiro disco, em 2008. E só agora chega o segundo, com a novidade da parceria de sua mulher, Márcia Barbosa (professora do curso de Letras da UPF), revelando-se inspirada letrista. Boeira é um MPBista do tipo clássico, voz macia, e o disco se desenvolve quase inteiro nesse clima, com vários sambas e o forte baião Povaréu, sobre o caos do mundo atual. E se nunca fez música regional, desta vez traz uma milonga, Complexo de épico II, comentário crítico sobre a mitologia gauchesca. É uma das melhores faixas. Gravado no Rio com produção de Trentin, o álbum tem a participação de grandes músicos cariocas, como Celso Fonseca.
Independente, R$ 30, à venda no Facebook raulboeiramarciabarbosa
SAMBISTA DO POVO
De Carlinhos Presidente
Carlos Paredes sempre viveu no meio do samba, mas foi como jogador de futebol que ele deixou o Estado, depois de atuar nas categorias de base do Grêmio. Carreira encerrada precocemente, radicou-se no Rio, passando a frequentar e logo a destacar-se em rodas como Samba do Trabalhador e Quintal do Pagodinho. De volta a Porto Alegre em 2012 (mas vive na ponte aérea), tornou-se parceiro de Tonho Crocco, que o enturmou na cidade. Agora, com a saída do primeiro álbum, ficamos sabendo que Carlinhos Presidente aprendeu tudo com as melhores linhagens cariocas – é um bamba de respeito. Pra começar, o disco (gravado no Rio) tem dois mestres na linha de frente, o produtor Milton Manhães e o arranjador Ivan Paulo, além de músicos tarimbados. Talentoso, ele compõe e canta bem vários formatos de samba de raiz, com o humor predominando em letras como a de Sonho de pobre. A festa de ritmos inclui uma homenagem a Lupicínio.
Pró-cultura RS, R$ 20, à venda no Facebook irreverenciadosamba
CLAREZA
De Leandro Bertolo
Discípulo do lendário violonista Darcy Alves, Leandro Bertolo milita há muitos anos na noite de Porto Alegre, cantando MPB de todas as épocas. Este primeiro álbum começou a ser gravado em 2014 e é dedicado ao mestre, que morreu em 2015, aos 82 anos. Assim como ele fazia, Bertolo cercou-se de várias gerações de músicos. Entre outros, marcam presença Silfarnei Alves e Cabelinho (que tocaram com Darcy), Luís Henrique New, Pedrinho Figueiredo, Renato Mujeiko, Alex Vieira, Elias Barboza, Mathias Pinto. O roteiro do disco é igualmente amplo. Tem sambas como Carne de panela (Elias Barboza) e Do topo ao tombo (Marcelo Lehmann/Luís Mauro Vianna), serestas como Ai perdão (Mathias Pinto) e Meu inseparável violão (Darcy Alves) e até samba-enredo, Jorge (Bertolo). A presença das cantoras Liane Schuler e Glau Barros valoriza os vocais.
Independente, R$ 30 na Palavraria e por encomenda a leandrobertolo@gmail.com. Show de lançamento terça, às 21h, no Teatro da Santa Casa