
Sempre que um grande poeta morre, enquanto o silêncio se torna mais feio (para quem ama a poesia, o silêncio é o que acontece entre os versos) lembro de Borges. Em um pequeno escrito, dizia o mestre portenho: "Eu me deixo viver para que Borges possa tramar sua literatura. Nada me custa confessar que alcancei certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o que é bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, senão da linguagem ou da tradição." Assim, não pertence José a Drummond, Pasárgada a Bandeira, como, a partir de ontem (na verdade desde muito antes), Poema sujo a Ferreira Gullar.
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Obra máxima da segunda metade do século passado, Poema sujo é uma experiência total de leitura, com seu misto de memória, confissão, terra e sujeira, miséria e maravilha, sexo, descoberta, dicção de cordel, política, estilo arrojado e alta sonoridade, com passagens tão célebres que já não pertencem a ninguém, senão a todos nós, como descobrira Borges. No famoso trecho do trem, para ser cantado tendo Villa-Lobos ao fundo, temos uma puro instante de simplicidade e beleza:
piuí piuí piuí
adeus meu grupo escolar
adeus meu anzol de pescar
adeus menina que eu quis amar
que o trem me leva e nunca mais vai parar
Numa entrevista, disse Gullar sobre seu livro maior: "depois da fase política de minha poesia, comecei a elaborar uma linguagem poética que foi se tornando mais rigorosa, mais exigente e despojada, até o Poema sujo, onde, a rigor, faço explodir minha própria linguagem. Então, nesse sentido é que ele é sujo estilisticamente, porque mistura prosa, ritmo, rima –enfim, mistura tudo".
Concluído em 1975, Poema sujo viria a ser a depuração de todas as fases por que passara o poeta de São Luís, desde sua juventude parnasiana, passando pelo concretismo (e a turbulenta ruptura com o grupo paulista), pela engajamento social, até a descoberta da força de expressão da cultura popular nordestina. Como ele bem disse nos Cadernos de literatura brasileira: "A poesia verdadeira não é sectária, não é unilateral."
Poderia lembrar aqui, diante de sua perda física ainda viva, de outros tantos poemas de sua carreira, No corpo, Traduzir-se, O açúcar, mas vocês também estão se lembrando, espero, dos seus preferidos, e devem, porque são de vocês, porque são nossos, porque são, acima de tudo, de nossa língua.
Evoé.