
Esses tempos escrevi sobre uma coisa, não lembro qual coisa, mas escrevi que essa coisa ia ficar preta.
A coisa vai ficar preta, eu disse.
Jesus, como apanhei. Uma montanha de e-mails me acusava de racismo, era gente ofendida, gente me ofendendo, gente magoada e gente furiosa – mas também havia gente educada, como uma moça negra que me disse assim: "Sei que não foi sua intenção, mas relacionar o preto a algo negativo é o maior exemplo da naturalização do racismo. Sua frase mostra o quanto é comum reproduzir de maneira impensada um discurso opressivo aos negros. Você não tem culpa, está apenas subjugado a uma cultura assentada em três séculos de escravidão. Sugiro que tome mais cuidado".
Pedi perdão, claro, e prometi refletir sobre o assunto. Já tinham me dito que "denegrir", sinônimo de "difamar", também seria um vocábulo racista porque sua etimologia remete a "tornar negro". Quer dizer, segundo essa interpretação, se alguém disser "não venha me denegrir", estará dizendo "não venha me tornar negro", o que, de fato, fica horrível.
Outras colunas de Paulo Germano:
Sobre salvar o policial ou o traficante
Como ignorar a existência do outro
O La Urna e o Roda Viva
Michel Temer e Lula Lelé
Em uma rápida pesquisa no Google, descobri movimentos sociais, livros e campanhas pregando a erradicação de expressões como "mercado negro", "lista negra", "passado negro", "humor negro", "magia negra", "ovelha negra" e "lado negro da força" porque todas elas estariam relacionando negros a situações ruins. O mesmo raciocínio é empregado para evitar a frase que eu tinha escrito, "a coisa vai ficar preta".
É evidente que, se existem negros se ofendendo com esses termos, a discussão precisa ser feita – mas precisa ser feita em cima da verdade. E a verdade é que nenhuma dessas expressões jamais teve relação com a cor da pele de ninguém. Pode-se dizer que seria melhor evitá-las, mas não se pode dizer que elas sejam racistas. Ou, pior ainda, que alguém é racista porque as empregou.
A oposição entre as trevas e a luz, a escuridão e a claridade, a noite e o dia é uma das metáforas mais antigas da história da humanidade – muito anterior à escravidão dos africanos. Na criação do universo, Deus disse "faça-se a luz!". E, segundo o Gênesis, "viu Deus que a luz era boa e dividiu a luz das trevas".
Há 40 mil anos todas as assombrações são noturnas. O nosso luto é preto. Todo mundo já teve medo do escuro. Quando o mercado é negro, é porque está embaçado, está escondido, está no escuro. O passado é negro porque foi uma época de trevas. A lista é negra porque seus membros serão jogados às sombras. O humor é negro porque apela para sentimentos obscuros. A magia é negra porque evoca entidades soturnas. E, se a coisa vai ficar preta, é porque o tempo está fechando. São metáforas com a luminosidade, jamais com a cor da pele.
"Denegrir", é verdade, sugere uma mudança de cor. Mas porque significa manchar ou macular a honra de alguém. E manchas ou máculas costumam escurecer a superfície atingida. Portanto, se eu disser "não venha me denegrir", não estarei dizendo "não venha me tornar negro"; estarei dizendo "não venha manchar a minha honra, que é límpida e cristalina".
Não me parece que o problema sejam as palavras, mas a boca de onde elas saem. De nada adiantará determinar o que pode ser dito se o preconceito e a intolerância continuarem na cabeça de quem diz. Também me parece desnecessário escolher vocábulos para quem se pauta pela decência, porque qualquer coisa que a pessoa diga virá regada de boa-fé. Mas, claro, há um ponto de inflexão aqui: não sou negro.
Não tenho autoridade alguma para dizer o que pode ou não insultar quem experimenta a brutalidade do racismo. Se há muitos negros ofendidos com as expressões acima, talvez seja o momento de repensar sobre elas – ainda que nenhuma delas seja racista. Racista é dizer "negro de alma branca". Porque não há outra interpretação possível para a estupidez dessa frase. Racista é dizer "serviço de preto", "não faça coisa de negro". Porque aqui se invoca a cor da pele.
Há expressões que têm uma única acepção e ponto. É arrogante, mesquinho e detestável buscar explicações para barbaridades como "chora, macaco imundo", que a torcida do meu time canta na Arena em todo jogo. E é igualmente arrogante, mesquinho e detestável que a direção do Grêmio, às vésperas de erguer uma taça nacional, tenha chegado a 2016 sem sequer dizer o que pensa sobre essa vergonha que – peço permissão para usar o verbo – denigre de forma vexatória a história do meu clube.
Não se deve proibir palavras, é verdade. Mas "macaco imundo" nunca entrou no dicionário. Jamais deveria ter entrado em lugar nenhum.