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A prefeitura de Porto Alegre resolveu pôr fim a uma tradição iniciada 80 anos atrás, quando um grupo de mulheres de Pelotas radicadas na Capital viu um homem envolto em trapos ser enterrado em uma vala comum, sem qualquer dignidade, por falta de dinheiro. Elas criaram a Sociedade União Pelotense São Francisco de Paula, dedicada a doar caixões e ajudar famílias de baixa renda na hora da morte de um parente. Depois de décadas de presença na cidade e de milhares de sepultamentos, a entidade que ganhou fama como Enterro do Pobre está impedida de atuar.
A prefeitura, por meio do Sindicato dos Estabelecimentos Funerários do Rio Grande do Sul (Sesf/RS), decidiu encerrar, em outubro passado, o convênio que mantinha com a sociedade. Na sede da instituição, na Rua Bento Martins, caixões adquiridos para doação aguardam uso, apoiados em paredes, dividindo o espaço com placas de homenagem e reconhecimento ao trabalho do grupo.
- Temos caixões para doar. Mas não temos a quem doá-los. Simplesmente fecharam as portas do Enterro do Pobre, e 80 anos de trabalho foram jogados debaixo do tapete - lamenta a presidente da sociedade, Maria Thereza Fonseca Bezerra, neta de uma das fundadoras da instituição.
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A justificativa para o cancelamento, de acordo com um documento enviado à direção do Enterro do Pobre e assinado pelo então presidente do Sesf/RS, Luiz Carlos Brum, é que o serviço funerário gratuito deveria ser feito somente pela Central de Atendimento Funerário (CAF), comandada por funerárias que têm a permissão de prestar o serviço em Porto Alegre. O atendimento às famílias pobres é a contrapartida exigida pela prefeitura para que um grupo de empresários do setor possa explorar o serviço pago na cidade. Todos os sepultamentos da Capital têm de passar obrigatoriamente pela CAF.
- Foi um choque grande. Não aceitamos a justificativa, mas não temos como enfrentar. Vamos seguir nosso trabalho em outro lugar, apesar de saber que poderíamos mantê-lo aqui, juntamente com a CAF - afirma Maria Thereza.
Um convênio foi feito para que os caixões da entidade agora sejam doados a Eldorado do Sul, a um ritmo de 30 por mês. Antes do cancelamento do convênio na Capital, o Enterro do Pobre já tinha minguado devido a cotas estabelecidas pela prefeitura. No ano passado, sepultou 273 pessoas até outubro, contra 643 enterros gratuitos da CAF ao longo do ano. Em 2012, já trabalhando com a cota de 30 sepultamentos por mês imposta pelo acerto com o município, a sociedade recebeu 374 pedidos de enterros gratuitos. O número é baixo, comparado com os de antes da organização do sistema funerário municipal, em 2000. Naquele ano, o Enterro do Pobre fez 1.088 enterros, uma média de três por dia.
- Os pobres deixaram de morrer? - questiona Maria Thereza, apostando que há demanda para a caridade.
Município afirma que ajuda é desnecessária
Paulo Valentim Saldanha Fernandez, presidente da Comissão Municipal de Serviços Funerários, que fiscaliza o setor em Porto Alegre e o próprio andamento da CAF, explica que o fim do convênio é simplesmente o cumprimento das leis municipais que regularizam o serviço funerário na Capital há mais de 10 anos.
- É responsabilidade das funerárias permissionárias do serviço fazer o atendimento da população pobre. É uma das contrapartidas para que possam atuar em Porto Alegre. As senhoras do Enterro do Pobre pediam doações para comprar os caixões, e essas doações haviam diminuído muito. Não faz sentido pedir doações para algo que não é necessário. Que peçam essa ajuda para outros fins. O sistema funerário da cidade assumiu esse papel - diz Valentim.
Carlos Alberto Graff, atual presidente do Sesf/RS, reforça:
- Até o momento, as empresas funerárias estão dando conta da demanda. Por isso, não há porque repassar o serviço a outra entidade.
A direção do Enterro do Pobre rebate a avaliação do presidente da comissão, garantindo que não pede doações - porque tem colaboradores fixos de longa data -, e descarta a possibilidade de mudar a finalidade da entidade.
- Sempre fizemos isso. Nossas avós e mães se dedicaram a isso desde que saíram de Pelotas. São 80 anos. É um compromisso com a história do Enterro do Pobre - diz Maria Thereza, comovida e inconformada com o fim do trabalho em Porto Alegre.
Cova rasa e um adeus de 20 minutos
Na sexta-feira, Laerte Jesus Souza de Almeida foi enterrado nu no campo santo do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre. Seu corpo estava envolvido, dentro do caixão, apenas por um manto.
A nudez é uma das peculiaridades de sepultamentos gratuitos na Capital. O serviço também se caracteriza pelo tempo curto para a despedida dos familiares - sem velório, velas ou flores -, pelas covas rasas, pela falta de lápides com identificação e pelo prazo marcado para desocupação da sepultura.
Eliana de Almeida, irmã de Laerte, contou ter sido orientada ainda no hospital onde ele morreu a entregar o corpo sem qualquer vestimenta. O caixão se manteve fechado durante a maior parte dos poucos minutos reservados à despedida. Ela não se importou, não questionou e se mostrou agradecida. A perda do familiar poderia ser mais triste se tivesse de bancar o esquife.
- Tudo o que vier para nos ajudar está bom. Pelo menos, ele teve um caixão - disse a mulher, antes de improvisar um arranjo de flores e depositá-lo no monte de terra que encobria o corpo do irmão.
O campo santo é o destino dos mortos que são sepultados gratuitamente na Capital em dias úteis. Em feriados e finais de semana, o enterro dessas pessoas ocorre no Cemitério Municipal São João. O serviço gratuito oferecido pela CAF garante caixão, translado do corpo, orientação sobre os trâmites burocráticos e assistência social aos familiares. É um direito assegurado aos mortos de Porto Alegre, desde que o parente responsável comprove ter uma renda mensal de, no máximo, dois salários mínimos.
Além do ritual abreviado, por vezes falta até choro nos enterros, porque muitos dos sepultados haviam se distanciado da família. Morrem esquecidos. Quando há familiares no enterro, contam os coveiros, são sempre pouco numerosos, e a eles são concedidos 20 minutos para a despedida ou uma oração silenciosa em uma capela sem confortos, com o teto esburacado.
A chamada morada eterna dura pouco. As sepulturas no campo santo precisam ser desocupadas em três anos a contar do enterro, para dar lugar a outro corpo. Se não há quem reclame os restos mortais dentro desse prazo, eles vão para um ossuário geral - e depois disso não há mais possibilidade de identificar a quem pertencem.
Questionado sobre o adeus apressado e os cadáveres desnudos, Paulo Valentim, presidente da Comissão Municipal de Serviços Funerários, disse que o tempo de despedida pode ser ampliado se for um pedido da família, o que dificilmente ocorre, e que as pessoas são orientadas a levar roupas para seus mortos, mas nem sempre aparecem em tempo de vesti-los.
- Muitas vezes, nem é questão de tempo. As pessoas simplesmente não cumprem as orientações e não levam as roupas. Não podemos esperar. Temos de atender a todos - diz Valentim.
Outra dificuldade é que pessoas que poderiam se beneficiar da gratuidade desconhecem a existência do serviço. Equilibrando-se para desviar da linha imaginária que separa os túmulos no chão do campo santo, a azulejista Maria dos Santos, 35 anos, cumpre todas as sextas-feiras o ritual de conferir como estão as sepulturas do pai, do tio e de um sobrinho, mortos há cerca de dois meses.
Ela garante que comprou os caixões e que não sabia da possibilidade de enterrá-los sem custo algum. Agora, batalha para dar aos seus três mortos um lugar melhor na morte. No campo santo, eles estão enterrados em covas rasas - com cerca de três palmos, como adianta o coveiro Olímpio Teixeira, 61 anos, há mais de 25 anos revirando a terra que cobre e descobre caixões.
- Estou pagando R$ 130 por mês para colocar os três lá em cima (em um ponto mais nobre do cemitério) daqui a três anos. Aqui não dá. Ficam aí, meio jogados, sem nome, nem nada - diz Maria, diante das placas de ferro que identificam seus familiares pelos números 1339, 1340 e 1264.