Primeiro você é arrebatado pelo cheiro: doce, porém, com certo toque ácido, como mil marshmallows queimados. Depois, você se impressiona com o tamanho; são cinco andares de altura e mais comprido que um campo de futebol. O armazém da fábrica de açúcar Domino, localizado em East River no Brooklyn, Nova York, foi construído em 1927 para guardar montanhas de açúcar bruto antes do refinamento. A fábrica foi fechada há uma década. No entanto, suas paredes em ruínas ainda estão cheias de melaço.
Mas siga fábrica adentro, e essa bagunça dá lugar à pureza: elevando-se entre as vigas e se estendendo por 23 metros encontra-se uma grande esfinge, tão recatada quanto sua prima egípcia, mas brilhante devido a uma recente cobertura de açúcar.
Kara Walker, a criadora da fera, parece pequena diante do seu colosso quase finalizado, uma homenagem ao trabalho escravo das lavouras de cana-de-açúcar que ela escolheu fazer grotescamente branca. Ela pôs o título de "Uma Sutileza" - como as complexas esculturas de açúcar que foram peças de centro para os banquetes medievais - embora seja absurdamente nada sutil. O seu subtítulo é "O Maravilhoso Bebê de Açúcar, um tributo aos artesãos não pagos e com sobrecarga de trabalho que refinaram os nossos doces paladares desde os campos de cana-de-açúcar até as cozinhas do Novo Mundo".
A obra foi encomendada pela Creative Time, o grupo conhecido por seus projetos de arte pública. - Isso dá a sensação de um cenário de Cecil B. DeMille, disse Nato Thompson, o curador chefe da Creative Time, contemplando o resultado. De 10 de maio a 6 de julho, de sexta a domingo, o público vai poder participar da experiência.
Walker é uma mulher orgulhosamente alta. Para se proteger do açúcar flutuante do local, a artista usa um macacão de plástico amarelo e uma bandana azul com trevo estampado. A sua face é misteriosamente parecida com a da sua esfinge.
- Acabo de notar que o seu nariz e perfil são meus, com certeza, Walker disse. O "acabo" é difícil de acreditar: em março, quando visitei o seu estúdio pela primeira vez, ela falou sobre alargar as narinas de um rascunho inicial da cabeça e, talvez, inconscientemente, apontou para o seu próprio nariz enquanto falava.
Os incrédulos - que não são poucos - podem associar a esfinge ao ego inflado de Walker. Mas isso facilmente pode ser uma paródia do papel de artista gênio imposto a ela por outras pessoas. - Brincar com isso não é necessariamente desconsiderar o fato, mas é reconhecer a completa tolice de toda essa noção, ela disse.
Nos 20 anos após a sua instalação de sucesso no Centro de Desenho de em Nova York, quando tinha apenas 24 anos, Walker se tornou uma figura de destaque - uma artista visual negra que alcançou sucesso mundial sem precedentes. Suas silhuetas e animações recortadas, expostas e compradas por museus de todo o país e do exterior, utilizam imagens da alta sociedade do século 19 para ampliar as disfunções geradas pela escravidão.
- Mamãe cria arte malvada, foi o julgamento da filha da artista, Octavia, feito há doze meses, quando ela tinha quatro anos, e isso está bem próximo da verdade. Ao dar uma bolsa de gênio de US$ 190 mil a Walker em 1997, a Fundação MacArthur mencionou que as imagens dela exploravam os vestígios da exploração sexual, física e racial herdados da escravidão. Ela já retratou o sexo de todo tipo concebível entre o senhor do engenho, a sinhá e o escravo; suas visões panorâmicas do Sul anterior à Guerra Civil incluem cenas de defecação, amputação, castração e decapitação. Violenta, sim, porém, Walker também vê um lado absurdista do sangue em sua obra.
A primeira exibição de Walker no museu, em 2007, foi organizada por Philippe Vergne para o Centro de Arte de Walker em Mineápolis, e a exibição viajou para o Museu Whitney em Nova York e para várias outras cidades. Como cidadão francês, ele disse achar que a obra de Walker vai além da escravidão ou da raça ou mesmo da cultura americana. - Você só precisa abrir qualquer jornal no mundo para ver que o abuso do gênero, o abuso sexual e o abuso de poder fazem parte da nossa estrutura, infelizmente, Vergne disse em Los Angeles, onde é o novo diretor do Museu de Arte Contemporânea.
Em 1997, a artista veterana Betye Saar, também negra, liderou uma campanha para escrever cartas contra a obra de Walker, protestando contra os estereótipos negativos de negros tanto como vítimas quanto como agressores que Saar afirmou alimentar as expectativas dos brancos. Saar falou de uma sensação de traição pelas mãos de uma artista negra que obviamente odiava ser negra.
Walker disse estar consciente dos riscos que a sua obra corre e das questões que ela levanta sobre revelar as disfunções versus celebrar as conquistas, sobre a lealdade à raça verso se prostrar diante da cultura dominante. Ela insiste em dizer que gosta da ideia de um público que protesta que está tão envolvido com a sua arte que também está disposto a ficar enfurecido com ela.
Walker descreve o seu conflito com Saar em termos de duelo de gigantes: - Temos Biggie, e temos Tupac, e eles batalham através de suas artes, e a arte é mais forte por isso.
Ou pelo menos maior.
- Em algumas maneiras, criar um projeto como esse é desrespeitar um pouco os opositores, os derrotistas, os haters, Walker disse sobre a sua esfinge na Domino. Com a sua obra anterior, mesmo os seus defensores admitiram que o anti-herói recorrente da obra de Walker - conhecida como "a Negra" - nunca tinha tido controle verdadeiro sobre o seu destino. Porém, com a esfinge parecida com a Negra de Walker, essa coitada pode ter se tornado finalmente a vencedora imbatível.
Walker nasceu em 1969 em Stockton, na Califórnia, onde o pai, Larry Walker, foi presidente do departamento de arte da Universidade do Pacífico. - Ela pintava e desenhava no estúdio do pai, e eu ficava tão fascinado com o que ela fazia que parava para assistir, ele recorda, falando de sua casa em Lithonia, na Georgia.
Em 1983, a família mudou para a Georgia onde Larry Walker nasceu. Kara Walker se lembra da sua escola na Califórnia como sendo um arco-íris de raças, ao passo que, em Atlanta, parecia haver afrodescendentes, brancos e um vasto abismo no meio. - O mundo se tornou preto e branco para ela, o pai lembra.
Vergne, o curador da exibição de 2007, aponta a mistura de sangue exagerada e a seriedade em sua arte. Ele descreveu as silhuetas como um pouco de "Django Livre" - uma paródia leve - e "12 Anos de Escravidão", um drama histórico. - Ela flutua entre as duas obras, segundo ele.
Eu acompanhei Walker e a sua equipe até a atual fabrica Domino em Yonkers, onde tivemos uma introdução ao controle de pragas e empacotamento e aos processos limpos. Eles nos contaram que agora só precisam de sete pessoas para o funcionamento do processo de refinaria, ao passo que, em Williamsburg, precisavam de dezenas.
De certo modo, a sua escultura é sobre a morte dos trabalhadores braçais da América. O edifício da Domino em East River agora pertence ao construtor e amante da arte Jed Walentas, que emprestou o espaço à Creative Time enquanto ele se prepara para nivelar boa parte da estrutura para construção de apartamentos destinados à nova elite do bairro de Williamsburg.
Walker escreveu: O açúcar cristaliza algo em nossa alma americana. Ele é um emblema de todos os Processos Industriais. E da ideia de virar branco. O branco sendo igualado à pureza, e é 'verdade' que é preciso muita energia para transformar coisas marrons em brancas. Muita pressão.

