
Acordei ansioso no dia 6 de janeiro de 2013. Mesmo sabendo onde estaria a seguir, ainda não tinha certeza se estava preparado para isso. Conheceria o local onde, em 26 de abril de 1986, aconteceu o maior desastre nuclear da história. Apesar da tentativa em ser ocultado, foi detectado por satélites após a alta radioatividade alcançar os países escandinavos e a Grã-Bretanha.
O frio ucraniano era o primeiro dos temores, em alguns lugares alcançando aproximadamente -20°C. Em Kiev, os -10°C ainda eram suportáveis.
Como combinado, às 9h, estava em frente ao Hotel Kozatskiy para a jornada que se estenderia por cerca de duas horas até que chegássemos ao primeiro "checkpoint" da cidade que, em 1986, liberou uma quantidade de radioatividade cem vezes maior que a liberada pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki.
A explosão do reator quatro na usina de Chernobyl foi um dos passos para o fim do desarmamento nuclear e da Guerra Fria, que envolvia União Soviética e Estados Unidos e acabou em 1991. Como qualquer amante de história ou principalmente amante de fim de guerras, o lugar tem grande significado para mim - além de ter ocorrido em 1986, ano em que nasci.
Leia mais
Menos badalada, Bósnia é um belo destino mais em conta na Europa
Colunista do Viagem relata o impacto de conhecer Auschwitz
O impacto de uma visita à Casa de Anne Frank, em Amsterdã
No caminho, deslizamos sobre a intensa neve que nos seguia, e, embora o sol tentasse sair de trás das nuvens, a neblina ainda era forte, dificultando nossa visão ao procurarmos pelo horizonte do lado de fora da van. Do lado de dentro, no entanto, uma pequena televisão transmitia o documentário The Battle of Chernobyl, que conta um pouco mais da história da luta para conter a explosão do reator quatro da usina. No caminho, as placas reforçavam a ansiedade ao nos mostrar a distância que estávamos da cidade.
Ao alcançarmos o Dytyatky checkpoint, primeiro deles, todos foram para fora do carro. Os oficiais ucranianos não são dos mais simpáticos, não existe motivo para isso. Enquanto um deles checa os passaportes dos viajantes, outro vasculha a van em busca de qualquer substância proibida. Não se entra na cidade mesmo com uma simples fruta comprada fora dali. Após termos nossos passaportes minuciosamente checados, encontramos a guia que passaria o dia conosco e seguimos rumo ao desconhecido.
Depois de uma parada rápida para fotos na placa de entrada da cidade atômica de Chernobyl, recebemos novamente algumas instruções básicas e assinamos o termo acordando que sabemos sobre a radioatividade do local e isentamos os organizadores de qualquer responsabilidade por futuros efeitos.
Foto: Gabriel Almeida

Paradas para reflexão
O primeiro choque já ocorre quando paramos na praça Wormwood Star Memorial Park: 188 cruzes fincadas no solo contaminado mostram os nomes dos 188 assentamentos inabitados. É um momento de reflexão para pensar em cada família afetada pela tragédia, que, em duas horas, tiveram de recolher seus pertences mais valiosos com a promessa de que voltariam quatro dias depois. Esse era apenas o começo do caminho que ainda nos faria refletir muitas outras vezes.
A parada seguinte foi em frente ao Memorial Aqueles Que Salvaram o Mundo: logo após a explosão do reator quatro, os primeiros bombeiros foram chamados e, sem saber que estavam lidando com um inimigo invisível, não estavam equipados com roupas protetoras ou respiradores para diminuir o efeito da radiação.
Seus corpos receberam doses letais, o que os levou à morte em menos de 48 horas após o início da "batalha".
Foto: Gabriel Almeida

Camas e brinquedos
A mais intensa das paradas viria em seguida. Logo atrás do monumento em homenagem aos combatentes mortos na II Guerra Mundial, encontra-se um jardim de infância, onde, anos atrás, dezenas de crianças corriam, pulavam e brincavam com bonecas ou bichinhos de pelúcia. É nesse jardim de infância que encaramos a mais chocante das imagens dessa viagem: são dezenas de camas, desenhos, brinquedos, roupas, remédios, livros, cadernos. Um cotidiano deixado para trás.
Ao entrar, não sabíamos para onde olhar, para onde caminhar, se tirávamos alguma foto ou apenas contemplávamos estarrecidos, com um nó na garganta, com a ausência de palavras, a imagem de um local que um dia fora cheio de vida e hoje é a imagem do abandono.
Ao sair, o sol não era mais tão brilhante, o resto do caminho não era mais tão esperado, o reator número quatro, próxima parada, não era mais o que queríamos ver, mas o que não queríamos que sequer tivesse existido.
Sarcófago
Seguimos em silêncio enquanto digeríamos as imagens deixadas para trás. Era hora de seguir a trilha e parar em frente ao reator quatro, hoje com uma cobertura de concreto utilizada para conter o que tememos, mas que não pode durar para sempre devido à ação do tempo e do clima.
O chamado Sarcófago tem uma vida útil, vida essa que já está se extinguindo. Isso fez com que o governo ucraniano, em parceria com um consórcio francês, iniciasse, no ano passado, a construção de um novo sarcófago, um cubo de 257 metros de comprimento por 150 de largura e 108 de altura.
Ao lado do monumento em honra aos 20 anos da construção do sarcófago, estamos a pouco mais de 200 metros do reator que explodiu. Esse é outro momento de reflexão ao olharmos as inscrições, em russo e inglês: "Aos heróis, profissionais, àqueles que protegeram o mundo do desastre nuclear".
Pripyat
Era hora de deixarmos Chernobyl para trás e partirmos para a cidade fantasma de Pripyat. Uma vez tendo sido uma cidade povoada por aproximadamente 50 mil moradores, principalmente pelas famílias daqueles que trabalhavam na usina, a cidade era uma das mais organizadas de toda a extinta União Soviética, planejada detalhadamente de modo a atender com conforto cada um dos seus moradores.
É sabido que a União Soviética era fechada para mercados internacionais, porém, alguns luxos - como perfumes importados - só poderiam ser encontrados em Moscou e Pripyat. Na praça central, vê-se o Hotel Polissya, o complexo esportivo, o cinema e os vários prédios - tudo para sempre inabitável.
Caminhamos com neve até as canelas, atravessando a praça, e chegamos à nunca inaugurada roda-gigante, o que seria o mais novo brinquedo do parque de diversões da cidade. Os carrinhos de bater hoje cobertos de ferrugem, as estruturas metálicas a rangerem tristemente, o balançar dos arbustos de folhas secas e amareladas, tudo parece meio opaco, uma ausência de vida que contrasta apenas com os grafites nas paredes, que, cheio de cores, mostram crianças sorridentes.
Símbolos do passado
Antes de deixarmos Pripyat, passamos pelo antigo Palats Kultury (Palácio Cultural), localizado no mesmo prédio do complexo esportivo, que abrigava também a prefeitura e um centro de convenções. É lá que conseguimos ver as imagens de líderes soviéticos e uma grande placa com a imagem da face de Lênin e a silhueta da usina.
As lembranças soviéticas continuam na cidade, nos postes, nos prédios - a foice, o martelo ou a estrela vermelha.