Comportamento

A turma do pivotar

Planos de fazer carreira cedem lugar à vontade de mudar e não permanecer na mesma função

Ordem é buscar o que dá satisfação, mesmo que seja necessário desapegar-se de estabilidade financeira

Diego Vara / Agencia RBS
O engenheiro Martin Rahde Weiler se sentia frustrado e se demitiu para estudar música na UFRGS. Hoje é percussionista

A regra é não se tornar móveis e utensílios de uma firma, exercer a mesma função por anos a fio, até se aposentar com todos os rapapés dos colegas e o discurso comovido do patrão. Este modelo, que se consolidou a partir dos anos 1960, perdeu o vigor.

A ordem, agora, é buscar aquilo que dê satisfação, mesmo que seja necessário desapegar-se de uma suposta estabilidade financeira.

- Os jovens não ficarão fazendo algo de que não gostem. A demanda é pelo prazer no trabalho - destaca a psicanalista Diana Corso.

A tendência pode sinalizar uma reinvenção do trabalho. Se os avôs eram premiados pela fidelidade da longa permanência na empresa, os jovens querem um ofício original, que permita voos de criatividade. Diana observa que o comportamento pode gerar instabilidade, mas é próprio da geração:

- Estão sempre zerando e "resetando", tanto na vida amorosa quanto na laboral.

A comparação poderia remeter ao casamento? Talvez. Antes da Lei do Divórcio, de 1977, casais evitavam se separar. Viviam às turras, tipo gata e cachorro, mas insistiam em dividir o mesmo teto para manter as aparências. Algo similar estaria ocorrendo com o emprego. Se não está contente, parta para outro batente.

Existe até um termo para definir a nova postura. É o neologismo "pivotar", originário do verbo pivot, do inglês e francês, o qual significa mudança radical, tão inesperada como o giro de um pião ou o salto de uma catapulta. A expressão nasceu nas incubadoras de startups - as empresas que brotam da incerteza,  crescem rapidamente e rendem lucros acima do imaginado - e vem se espalhando para outras áreas.

Sobram exemplos de "pivotagem". E tão extremos que parecem improváveis. Alfredo Arriada, 50 anos, plantava arroz em Curral Alto, distrito de Santa Vitória do Palmar, na zona sul do Estado. Pilotava trator, graneleiro e colheitadeira, eventualmente manchava as mãos com os respingos de óleo diesel dos motores. Uma das tarefas era regular a aguagem da planta: deve ficar submersa até um palmo de altura, mas com a espiga exposta ao sol, para que a conjugação umidade e calor acelere o crescimento.

- Trabalhava da madrugada até o sol entrar - lembra.

Os barris de óleo estão distantes. Atualmente, Alfredo é proprietário de um salão de beleza, no bairro Bela Vista, em Porto Alegre, com a mulher, Cláudia Busnadiego Arriada, 47 anos. Cuida do estoque de xampus, hidratantes, cremes e tinturas para cabelo. Em vez de peões e lavradores, administra cabeleireiras e manicures. E agenda hora com as clientes, quando o atendente precisa se afastar para o almoço.

O casal Arriada se conheceu em Pelotas, onde estudava. Vindo de Santa Vitória do Palmar, Alfredo se formou em eletrotécnica e cursou engenharia. Nascida em Jaguarão, Cláudia transformou a escova de pentear numa arte. Quando a plantação de arroz ficou inviável - preço baixo, altos custos e juros escorchantes -, os dois investiram no ramo da estética.
- A gente faz um atendimento personalizado, somos um salão de bairro - diz Cláudia.

Das pranchetas às partituras

São inúmeros os motivos que impelem as pessoas a se arrojarem no trapézio das profissões. O principal é o desejo de aliar o ganha-pão ao prazer. Pedras que pivotam, pelo menos por enquanto, estão valorizadas.

Martin Rahde Weiler trabalhava como engenheiro numa indústria gaúcha que exporta até para o seleto mercado dos Estados Unidos. Seria promovido e ganharia aumento salarial, mas se demitiu para estudar música na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Não houve proposta que o demovesse.

Aos 27 anos, Martin diz por que substituiu as pranchetas de engenharia pelas partituras musicais - é percussionista. Apesar da excelência da empresa onde atuava, sentia-se frustrado, sem espaço para criar.

- Abdiquei - resume.

Para a maioria das criaturas, equações matemáticas e melodias são antagônicas, mas Martin observa que a música "tem algo de exato", no seu ritmo. O percussionista agora vive dos cachês das bandas Cachaça de Rolha e Turucutá, além de algumas tarefas extras como musicar peças de teatro. São pagamentos esparsos, mas ele não se arrepende de ter pendurado o jaleco de engenheiro de produção.

- Teria uma remuneração maior, mas certamente não pagaria a satisfação que tenho hoje com a música - ressalta.

Atitudes como a de Martin evidenciam que os jovens estão assumindo as rédeas de suas profissões. O diretor da Coach Consultoria em Desenvolvimento Humano, Marcelo Cassales Saldanha, diz estar acabando a "visão patriarcal" de que é a empresa quem dita a carreira dos funcionários.

- A ideia da estabilidade, na iniciativa privada, deixou de existir. Até os anos 1990, analisava-se o currículo pelo tempo no emprego, agora não é mais assim - esclarece.

É um caminho de mão dupla. Para o consultor, empresários não querem mais o profissional de carreira, preferem trocá-lo na velocidade das exigências, sempre mirando o mais qualificado. Em contrapartida, as pessoas não querem ir a reboque do humor dos empregadores e tratam de obter a independência possível. O raciocínio é simples, conforme Saldanha:

- Se a empresa pode me trocar a qualquer momento, eu também posso trocar de empresa quando bem entender.

Globalização cria novos rumos

A mudança se acentuou com a chegada da geração Y ao mercado de trabalho.
Nascidos após 1980 e conectados à internet, os jovens testemunharam os pais acumulando horas extras e ralando em feriados, por vezes sacrificando a convivência com a família. Concluíram que o bem-estar é tão indispensável quanto o emprego.

- Essa geração traz novos valores. Quer o controle não só da carreira, mas da vida - diz Saldanha.

A geração Y também ampliou os horizontes. Keine Gisele Pacheco dos Santos, 28 anos, e Ricardo Scandolara, 31 anos, largaram os empregos na Capital para estudar inglês na Austrália. Formada em Turismo, ela teve o apoio familiar. Mas Ricardo, graduado em Administração e análise de sistemas, enfrentou a resistência do pai, Elói, caminhoneiro que mora em Erechim, no norte gaúcho.

"Pô, Ricardo, tu conseguiste um cargo melhor na tua empresa. Será que vais fazer a coisa certa indo para a Austrália?", aconselhou Elói à época.

Ricardo hesitou, mas não recuou. Juntou-se a Keine, que já estava morando em Sydney, onde sobrevivia como garçonete de cafeteria e atendente de hotel enquanto aperfeiçoava o inglês. Na volta ao Brasil, o casal trouxe um trunfo na bagagem: a franquia para abrir uma filial de agência de intercâmbio na Capital gaúcha.

Criada em 2009, a agência é um sucesso. Ricardo e Keine enviam, na média mensal, 20 jovens gaúchos que escolhem a Austrália para aprender inglês.

- A gente teve sorte de pular algumas etapas - conta Keine.

Ex-presidente da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Luiz Carlos Mabilde nota que eles se aplicam no emprego, mas, se não obtêm o retorno esperado, desligam-se imediatamente e exploram novos rumos, inclusive fora do Brasil.

- Tudo ficou mais fácil, claro e rápido. O que antes era pressa, hoje está no seu ritmo normal - diz Mabilde, também membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

Trocou a ideia de ser coronel por empresa própria

Desapegar-se de um emprego confortável provoca tremores até nos mais ousados - afinal, não é fácil saltar de um trem que engrenou. Imagine-se o dilema de Felipe Dutra Furtado, que ostentava as duas estrelinhas de primeiro-tenente do Exército nos ombros e planejava conquistar a patente de coronel, para orgulho do pai e dos tios, todos militares. Ele não tinha apenas um trabalho, mas uma vocação.

Pois Felipe abandonou a farda verde-oliva, ano passado, aos 26 anos, para montar uma empresa de informática que oferece programa de gestão a condomínios estilo clube social. No início, recebia metade do que ganhava no soldo de oficial, mas não se assustou. O pior não foi a queda salarial, mas deparar com o semblante vincado de preocupações do pai, Celomar Leandro Furtado, da Brigada Militar de Pelotas.

- Ele não ficou feliz, mas não me proibiu. Só perguntou por que eu não tentava as duas coisas simultaneamente por um tempo, para pensar melhor - lembra Felipe.

A decepção paterna é justificável. Desde os 19 anos no quartel, Felipe encarnava o sonho familiar de chegar ao coronelato - nenhum dos Furtado alcançou tal posto. Mas andava inquieto na caserna, sem o mesmo entusiasmo do começo. Acredita que a burocracia e a lentidão nos assuntos do Exército contribuíram para catapultar a "pivotada".

- A próxima estrela seria a de capitão, mas era o momento de mudar. Depois ficaria mais difícil - conta o jovem.

A empresa de serviços tecnológicos prosperou, acompanhando a expansão dos condomínios pela região metropolitana de Porto Alegre. O programa que Felipe oferece possibilita a gestão do novo conceito residencial em que os moradores compartilham desde a lavanderia até a quadra de basquete.

O ambiente militar não será esquecido. Quando menino, Felipe adorava visitar os quartéis da Brigada Militar e do Exército, acompanhando o pai e os tios. Apreciava as solenidades, os desfiles, o arrebatamento das bandas marciais, a imponência dos tanques e obuses. Sobretudo, notava o respeito que emana das fardas.

- No início, perdi algumas noites de sono, porque havia trocado a segurança de um trabalho por um empreendimento próprio. Mas deu tudo certo - comemora o jovem Felipe, cuja renda também decolou.

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Correspondente Gaúcha Postos Charrua

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