
Tropas envolvidas na Guerra dos Farrapos acamparam nas beiradas do Cerro do Jarau, para descansar os cavalos e curar os soldados feridos, ao abrigo dos montes pedregosos que compõem uma fortaleza natural na imensidão do pampa.
Estiveram ao pé da furna onde vive uma das mais preciosas lendas do Rio Grande do Sul: a Salamanca do Jarau.
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O encantamento do Cerro do Jarau segue intacto e atraindo quem busca pistas da princesa moura que se metamorfoseia em lagartixa (a teiniaguá, na língua tupi-guarani) para escapar de seus perseguidores naquele emaranhado de pedras, espinhos e arbustos. A meta é encontrar a salamanca, que significa a gruta mágica, onde se esconde a dublê de mulher e réptil.
Localizado no município de Quaraí, quase na fronteira com o Uruguai, o Cerro da Salamanca do Jarau está em terras de estancieiros, que conservam o lugar. Uma das fazendeiras na região, Kátia Lagreca Schmidt, 46 anos, decidiu lançar o turismo rural, organizando excursões com licença do proprietário. Quem mais se admira nas visitas são as crianças, cuja imaginação decola.
- Elas perguntam se a princesa existiu de verdade. E como ela podia ser uma lagartixa por tanto tempo - reproduz Kátia.
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Acompanhada pelo guia Everaldo Castro, o Cusso, 44 anos, Kátia conduziu a equipe de ZH até o cume do Jarau à procura da gruta, a salamanca. É um caminho íngreme, que exige equilíbrio de cabrito montês e botinas antiderrapantes. Urubus, alguns de cabeça vermelha despontando na plumagem negra, planam sobre os cerros, ampliando a sensação de mistério.
Na subida entre cáctus de dois metros de altura, fica-se atento se aparece alguma lagartixa entre as pedras brancas. A genuína teiniaguá é maior que as suas parentes, tem a cabeça vermelha fosforescente, como um carbúnculo. Outra versão é de que incrustraram um rubi na sua testa, que também reluz à distância.
Era a rosa do tesouro
A origem da Salamanca do Jarau é mais antiga que a Revolução Farroupilha. Remonta ao tempo dos padres jesuítas, como esclarece o folclorista Antonio Augusto Fagundes no seu livro Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul. Surgiu quando um moço sacristão do povoado de Santo Tomé, na Argentina, aprisionou a teiniaguá-
lagartixa numa guampa, ao recolher água de um poço para matar a sede. À noite, ela se transfigurou na princesa moura, e os dois se apaixonaram loucamente.
Era tão bela que o escritor João Simões Lopes Neto (1865-1916), no livro Lendas do Sul, a descreve como "a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo". Para fugir da ira dos jesuítas, o sacristão e a princesa se refugiaram no Cerro do Jarau, em Quaraí, onde se ocultaram numa caverna funda e comprida.
Os guias Cusso e Kátia se aproximam da gruta mágica, conduzindo a reportagem de ZH. Não se avista, no alto do cerro, nenhum rolo de fumaça ou vapores avermelhados, os quais são citados por intérpretes da lenda. E nada de lagartixas entre as rochas esbranquiçadas.
Finalmente, chega-se à furna. Ela não pode ser vista de longe, nem com binóculos, porque está protegida por uma cortina de plantas e pedras. Mede quatro metros de largura por dois metros de altura. Parece pequena, mas há uma fenda que vai se estreitando em direção ao ventre do cerro.
A partir da gruta, descortina-se uma paisagem vertiginosa, que vai se desdobrando ao infinito como um tapete verde - o pampa. Os urubus, que planam no embalo das correntes de ar, parecem ao alcance da mão.
Não se achou a teiniaguá, nem na versão de princesa moura.
Aliás, Simões Lopes Neto já alertara que ela só recebe pessoas sem pecados, que sejam honestas, serenas e generosas a toda prova.
O esconderijo de Bento Manuel
Há um lugar no Cerro da Salamanca do Jarau que não convém visitar à noite. É o cemitério que fica na antiga sede da estância de Bento Manuel Ribeiro, o controvertido oficial que trocou de lado durante a Revolução Farroupilha. Lutou pelos rebeldes, também pelos imperiais. Não sentia constrangimentos em mudar de uniforme.
O que restou do cemitério - um túmulo de concreto e sepulturas em cova rasa - está abandonado. Não é da época dos farrapos, mas de sucessores que ocuparam posteriormente a propriedade de Bento Manuel. Uma das cruzes de ferro pertence a Alcides Neves, falecido em 6 de fevereiro de 1928, aos 37 anos. No epitáfio, pode-se ler que foi uma "lembrança de sua esposa", que assinou com as iniciais do nome: Q. P. D.
O local não assusta pelos mortos, que deveriam jazer em paz, mas pelas violações que sofreu recentemente. Túmulos foram arrombados, é preciso cuidar por onde se caminha, para não afundar o pé em buracos. Também furtaram cruzes. Há 11 anos, quando conheceu o cemitério campestre, o guia Everaldo Castro, o Cusso, contou 20 cruzes. Sobram oito peças.
- Podem ter levado para fazer magia negra - supõe Cusso.
O mais tétrico é que os profanadores acamparam dentro do cemitério, que está cercado por um redil de pedras, possivelmente para fazer seus rituais. Cusso percebeu vestígios de fogueira, o que indica atividade noturna.
Bento Manuel, o "tocaio e amigo" de Bento Gonçalves, como se tratavam os dois comandantes por cartas, mesmo quando em fileiras inimigas, escolheu uma área estratégica para abrigar suas tropas na Revolução Farroupilha. Não poderia ser visto de longe, porque os montes, as matas e as rochas formam uma barreira.
Se fosse descoberto e atacado, Bento Manuel teria um fortim para se defender.
Pode-se observar que a fazenda tinha um curral de pedras, hoje parcialmente invadido por árvores cujas raízes se metem entre as frestas. Do que seria o casarão, subsistem os alicerces e um pedaço de parede.