Foto: Júlio Cordeiro
- Os olhos não me querem mais. Ô que a velha não acha mais o buraco - lastima Teresa, forçando a vista para prender a linha na agulha.
Foto: Júlio Cordeiro
- Ih, lá vem a história do anel - ri Ivone.
Teresa prossegue:
- Tá vendo esse anel aqui? Era do meu irmão bispo.
A aposentada se interessa também pela vida pessoal da entrevistadora.
- Tu não é casada? Tem que casar. Casar velha não pode... Não tem filhos? Não deu no couro?
Não entende como repórter e fotógrafo foram parar ali.
- Vocês são de Porto Alegre? E como chegaram a Campo Bom?
Teresa ouve a resposta e assente.
- E tu não é casada? Não fala alemão?
Após alguns instantes, ergue a mão e anuncia, solene:
- Esse anel eu ganhei do meu irmão bispo.
A perda das noções de higiene vem se acentuando. Teresa necessita de auxílio na hora do banho, principalmente para saber como usar cada produto.
Foto: Júlio Cordeiro
Olhando o xampu despejado na palma da mão, questiona:
- Pra que que é isso?
Há dois meses, Luís Antônio constatou, emocionado, o quanto a mãe dependia dele. Não poderia mais se ausentar do banheiro.
- Não precisa ficar junto - avisou ela.
- Grande coisa. Você é minha mãe.
Estavam ambos um pouco constrangidos. Teresa se postou de costas ao filho, que fez de conta que não a observava. O tom divertido ajudou a desfazer o desconforto:
- Lava bem tuas partes, mãe!
Uma sequência recente de três noites mal dormidas alarmou a todos. O sono entrecortado, característico do Alzheimer, é uma das turbulências que mais castigam o cuidador. Teresa levantava até 15 vezes de madrugada. Perdia-se no corredor escuro, sem óculos, tentando localizar o banheiro ou o caminho de volta. Ivone a encontrava assustada, alheia às súplicas:
- Mãe, tem que ficar deitada, quietinha, senão vai ficar doente. Está muito frio.
Exausta, irritada diante da irredutibilidade da idosa e fragilizada por uma pneumonia, a filha apelou a uma mentira:
- Se não ficar quietinha eu vou te amarrar na cama, que nem eles fazem no hospital.
Teresa se assustou, e pelo que disse em seguida ficou claro que acreditava estar falando com o marido, Aloys August, morto em 1999.
- Como tu é estúpido comigo!
- Mãe, deita - insistiu Ivone.
- Tu já foi lá olhar se as crianças estão tapadas?
Um dos momentos mais impactantes é quando o doente não reconhece os parentes próximos. Ivone experimentou a sensação pela primeira vez há alguns dias.
Foto: Júlio Cordeiro
- E a tua mãe, tá bem? - indagou Teresa.
A perturbação durou poucos minutos. Depois de uma volta no pátio, a idosa recuperou o discernimento:
- Ivone, vamos jogar uma canastrinha?
Os nomes dos mais jovens estão se embaralhando, sumindo. No alto da cama, a costureira examina a fotografia da criança de cabelo loiro sentada em um jardim e confessa não saber de quem se trata:
-É tanto filho e tanto neto...
Na sexta-feira 12 de setembro, Felícia, quatro anos, uma das bisnetas, está na casa para uma visita. Corre e pula sobre os móveis, mas não interage com Teresa.
Foto: Júlio Cordeiro
- A oma não ouve. Ela passou muito cotonete no ouvido - explica a menina.
Teresa deixa a conversa que não consegue acompanhar e vai para o quarto. Mais à vontade, Ivone conta sentir saudade da mãe de antes: gostava de compartilhar histórias dos três filhos e do marido, pedir conselhos. Os diálogos possíveis hoje não têm outro propósito a não ser preencher o vazio.
- Me sinto com o dever cumprido. Era um tempo de convívio que eu precisava ter com ela. Aprendi a relevar as coisas. Paciência é um exercício muito mais do que uma virtude que nasce contigo - diz Ivone. - Fico pensando: até onde ela vai? Não sei o que esperar. Não adianta eu pensar.
Ainda faltam algumas horas até que Lúcia venha apanhar Teresa para passar o fim de semana, e, no quarto, a aposentada começa a preparar a mala que depois Ivone terá de revisar, checando se contém tudo que é necessário para o passeio. Separa um pijama, uma lata de creme para a pele, um pacote de absorventes para a incontinência urinária, um terço.
- Vai estar frio? - quer saber.
Apesar da negativa, Teresa abre a gaveta e pega um par de pantufas.

Luís Antônio estranhou o comentário da mãe, costureira habituada aos dois salários mínimos mensais de aposentadoria.
- Tô com tanto dinheiro em casa... - anunciou Teresa.
Intrigado, o filho questionou a origem da alta quantia. A resposta o surpreendeu tanto quanto a primeira revelação:
- Eu não sei.
O contabilista pediu que Teresa lhe mostrasse os valores. Seguiu-a até o quarto, onde ela abriu o guarda-roupa e levou a mão até o esconderijo: camuflados debaixo de pilhas de roupas, diversos maços de notas bem dobradas. Luís Antônio pressionou, insistindo para saber de onde as cédulas tinham saído.
- Trabalhei a vida toda e poupei - justificou ela, aborrecida.
Na reconstituição dos fatos daquele dia de 2009, descobriu-se que Teresa sacou mais de R$ 7 mil da poupança em seu nome, acondicionou-os em uma sacola plástica de supermercado e tomou um ônibus ao deixar a agência bancária. Se despertou o interesse ou a suspeita dos demais passageiros, não se sabe - a idosa cumpriu o trajeto até a residência no bairro Hamburgo Velho, em Novo Hamburgo, sem ser importunada.
O desvario somou-se a outras evidências de que a viúva requeria vigilância constante. Teresa se repetia muito em um curto espaço de tempo, deixava torneiras abertas, guardava louça suja nos armários, perdia-se pela rua, confundia a posologia dos medicamentos, errava no preparo dos pratos.
- Acho que ela está velha - cogitava a neta Luísa, então uma criança (hoje tem 19 anos), ao provar a comida queimada da avó.
A sequência de desatinos motivou uma reunião familiar para que se tomasse uma providência. Luís Antônio e os outros cinco irmãos estavam prestes a protagonizar uma das mais emblemáticas passagens da existência: o momento em que os papéis se invertem e os filhos se tornam responsáveis pelos pais. Teresa Elisabeta Averbeck, octogenária diagnosticada com a doença de Alzheimer, não tinha mais condições de viver sozinha.
Mais comum das demências (65% dos casos), o Alzheimer provoca a destruição dos neurônios a partir de um processo ainda não totalmente desvendado. É uma enfermidade incurável que causa a perda progressiva e irreversível de funções cognitivas.
Começa afetando a memória recente - as informações mais novas são as primeiras a serem deletadas. Avança em direção às lembranças do passado, como um filme que se apaga de trás para a frente.
A doença leva o doente a habitar outras épocas, não reconhecer pessoas do convívio íntimo, confundir personagens - vivos e mortos, de diferentes fases da vida. Gradativamente, podem também ser comprometidos o senso de orientação, a personalidade, a linguagem, a atenção, a mobilidade, o sono. O doente involui, sobrecarregando os cuidadores. É quase como uma sentença coletiva: a família tem Alzheimer.
Um sinistro histórico preparara os Averbeck para assimilar o abalo do diagnóstico, informado pelo geriatra em 2007: dos 11 irmãos de Teresa, três mulheres, além da mãe, sofreram de Alzheimer, numa época em que os esquecimentos e as esquisitices levavam os idosos a serem tachados de caducos ou esclerosados.
Para enfrentar a doença que se prenunciava cruel e arrastada, todos acolheriam a matriarca: o endereço da dona de casa Ivone, a primogênita, em Campo Bom, passaria a ser o novo lar de Teresa, enquanto Lucia, Margaret, Luís Antônio, Paulo e Ingrid a receberiam nos finais de semana, em rodízio.
Pouco restou da rotina ativa de outros tempos. Aos 85 anos, Teresa consome os dias dormitando ou tentando atrair Ivone para um jogo de canastra. A noção das regras segue quase intacta. Por vezes, ela fixa o olhar no leque de cartas e alega não saber como proceder, mas logo retoma o eixo, derrotando os filhos ou a vizinha nas partidas.
A costureira atarefada, que confeccionava vestidos de noivas e debutantes, hoje tem dificuldades para pregar botões ou coser bainhas. Teresa não sabe mais bordar, tricotar, fazer crochê.

Ela gosta de conferir as notícias locais no jornal, começando pelo obituário ("para ver se eu não tô junto"). Os poucos anos de instrução não são percebidos na leitura ágil, pontuada por seus comentários.
- "Presidente do Uruguai visitou Novo Hamburgo." Que chique, né? "Tempo vai mudar e vem calor por aí" - chia. - "Realiza-se em 27 de setembro o Baile da Linguiça." Eu não gosto de linguiça, é coisa de colono.
Um recém-chegado percebe de imediato o componente que dá leveza à rotina: o bom humor ainda está muito presente em Teresa. No ambiente doméstico, todos falam o Plattdeutsch, dialeto trazido pelos ascendentes da Alemanha, e a oma se alterna entre mais de um idioma.
Nos três dias consecutivos em que a reportagem esteve com os Averbeck, Teresa sempre tratou os visitantes com o frescor das novidades - a intervalos de poucos minutos, ou até de segundos, já havia esquecido quem eram e por que estavam em sua sala de estar. Teresa não retém informações novas, o que explica a frequência impressionante das repetições.
- Sprichst du Deutsch? - pergunta, querendo saber se a repórter fala alemão.
Se as pessoas não elevam a voz, a surdez parece aliená-la dos diálogos à volta. De canto, ela confidencia:
- Escuto o que eu preciso.
O bate-papo pouco avança. Teresa sempre retrocede a etapas anteriores.
- Fala alemão? Não? Não quer aprender?
É restrito o repertório de assuntos. Teresa reproduz frases iguais em situações semelhantes: ao final de cada carteado, elogia a toalha de mesa verde e um dos quadros na parede. Costuma exaltar seus feitos.
- Eu tive seis filhos. Minha mãe teve 12!
Fala da beleza dos dois homens e das quatro mulheres e do sustento provido pela máquina de costura.
- Eu tive seis filhos - recomeça a seguir. - Criar seis filhos não foi brincadeira.
Volta e meia, mostra aos estranhos o adereço de cruz no anular da mão direita.




A DOENÇA DE ALZHEIMER
- Trata-se de uma doença neurodegenerativa. A partir de uma inflamação no cérebro, provocada pelo acúmulo da proteína beta-amiloide, desencadeia-se um processo progressivo e irreversível de destruição dos neurônios do hipocampo.
- O hipocampo é a região responsável pela memória e pelo armazenamento de informações, primeira habilidade a ser comprometida e a manifestar os sintomas. Dali, a inflamação se alastra para outros pontos, afetando o comportamento, a audição, a visão, a mobilidade, entre outras funções.
- Aos 60 anos, o risco de alguém ter a doença é de 1%. Ou seja, de cada cem pessoas nessa idade, uma tem Alzheimer. Aos 85 anos, o risco se eleva para 25% a 30%.
- Filhos e netos de doentes enfrentam risco quatro vezes maior de desenvolver a enfermidade.
O DIAGNÓSTICO
Estima-se que a doença tenha início de 10 a 20 anos antes do surgimento dos primeiros sintomas. O diagnóstico precoce é importante para que a família tenha tempo de assimilar o desafio e se preparar para as fases mais difíceis. O paciente se torna cada vez mais dependente.
- O quadro de Alzheimer sempre apresenta alterações de memória, mas nem toda falha de memória do idoso é indício. Ao contrário, a maior parte das queixas de problemas de memória não é sinal da doença.
- Exames de sangue, tomografia e ressonância magnética podem ser solicitados para descartar outros problemas. Não há um teste específico para a comprovação da doença de Alzheimer.
- Cada caso evolui de forma distinta, mas alguns sinais iniciais são bastante comuns. Familiares costumam perceber alterações de personalidade. O idoso se torna menos ativo e participativo, muitas vezes se isolando, o que pode suscitar a suspeita de depressão.
O TRATAMENTO
Não se pode frear a evolução da doença com os medicamentos disponíveis. Há remédios que proporcionam benefício modesto para a memória em alguns casos. O custo chega a cerca de R$ 700 mensais, com distribuição gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
- Recomenda-se a terapia ocupacional para ajudar no estímulo cognitivo. O terapeuta busca elementos significativos da história do paciente para definir que habilidades serão trabalhadas: tricô, crochê, música, artesanato, leitura. Pode-se acelerar muito a piora cognitiva quando o doente passa horas parado.
- Muito debilitante, a doença vai enfraquecendo as defesas do organismo, mas não leva à morte. O que causa o óbito são complicações típicas da velhice, como infecções repetidas e problemas cardiovasculares.
- É fundamental um revezamento entre os cuidadores. Como a convivência com o idoso exige muita paciência, é preciso que as pessoas que o cercam consigam dormir bem e manter atividades de lazer.
A PREVENÇÃO
Mesmo os familiares diretos de pacientes de Alzheimer, com predisposição genética, podem prevenir a doença.
- Praticar atividade física continuada.
- Manter-se socialmente ativo.
- Investir na escolaridade: quem estuda mais enfrenta menor risco.
- Controlar fatores de risco para enfermidades aterioescleróticas, como hipertensão, diabetes, colesterol alto, sedentarismo e tabagismo.
O FUTURO
O cérebro é um desafio especialmente árduo para a ciência. Imprevisível, a doença pode apresentar um sem-número de particularidades a cada caso. Pesquisadores intensificam esforços para identificar os primeiros sinais da enfermidade de forma cada vez mais precoce, via exames de imagens do cérebro ou de sangue.
- Estudo publicado em março na revista Nature Medicine conseguiu predizer o declínio cognitivo relacionado ao Alzheimer em pessoas sem sinais de perda de memória. Excluir a possibilidade dessa demência específica ou ter certeza do diagnóstico antecipadamente pode permitir, pelo menos, a adequação da medicação.
Fontes: Alberto Maia, farmacêutico e neurogeriatra, Aline Rodrigues da Silva, terapeuta ocupacional e gerontóloga, Cleonicia Bertolucci e Regina Pacheco, voluntárias da Associação Brasileira de Alzheimer, João Senger, geriatra, Paulo Caramelli, neurologista