
Ao desenhar a costa brasileira, Deus parou em Torres para descansar por sugestão do diabo, que surrupiou a caneta e concluiu o desenho com um traçado reto. É o que diz a piada sobre a fama de disparidade de beleza natural entre as praias do Rio Grande do Sul e o resto do país. Mas nem todo gaúcho acha graça nisso, como depreende-se pela repercussão que teve a coluna de Marcos Piangers "Vento no Litoral", publicada em ZH na sexta-feira.
No texto, o colunista narra uma visita em família às praias gaúchas e faz observações críticas quanto à paisagem e às condições do lugar - "Me senti (...) num ambiente tão inóspito, que não consigo entender como pode ser habitado". Ele reclamou do vento ("Era como se Deus pegasse areia com as mãos e enfiasse um punhado em meu olho aberto"), da música alta, do "aroma de peixe morto e a fumaça do queijo coalho", das ondas escuras e da espuma amarela - "provavelmente cheia de coliformes fecais". "Traumatizado", disse, ao final do texto, que marcaria hora no psiquiatra para superar a experiência. Antes, Piangers provocou: "O litoral gaúcho é provavelmente a única coisa gaúcha que os gaúchos reconhecem não ser a melhor coisa do mundo".
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No site de ZH e nas redes sociais, a coluna rendeu uma enxurrada de comentários. Uns acharam graça e concordaram: "O pior é que é 90% verdade tudo isso. Infelizmente o RS não tem praias bonitas. Começa a melhorar depois de Torres", escreveu um leitor. "O exagero é satírico. Ou vocês acham mesmo que ele marcou psiquiatra?", brincou outro.
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A maioria, no entanto, desaprovou o texto. "Não gostar do litoral gaúcho é um direito que o autor tem. O que ficou feio foi o deboche da viagem, da beira da praia e do povo gaúcho que tem este, muitas vezes, como o único mar disponível" comentou uma leitora em um e-mail ao jornal. "Ofendeu e chamou de burras milhares de veranistas e pessoas que dependem do nosso litoral", escreveu outro.
Movidos pela afetividade
É o envolvimento afetivo que leva os gaúchos às praias do Litoral Norte, movimentando a economia dos balneários - que, acumulando cifras entre dezembro e março, ganham uma gordurinha. Somente em Arroio do Sal, a população de 8,6 mil habitantes multiplica para 120 mil na alta temporada.
- Tem o nordestão, o mar aberto, mas as pessoas gostam das nossas praias. Os números comprovam isso: o litoral é a região que mais cresce no Estado - aponta o prefeito do município, Luciano Pinto, citando investimentos de R$ 2 bilhões que aguardam licenciamento ambiental para instalação no Litoral Norte.
O vento - não aquele de virar guarda-sóis - sopra forte também para a hotelaria. São 16 mil leitos da faixa que vai de Quintão a Torres (8 mil deles apenas em Torres, 2 mil a mais do que na temporada de 2014). E a lotação costuma atingir 100% no veraneio.
- Não existe, para o gaúcho, lugar tão aconchegante quanto o Litoral Norte. A cada ano, há mais procura - diz a presidente do Sindicato dos Hotéis e Restaurantes da região, Ivone Ferraz.
À frente do restaurante da família na Avenida Paraguassú, Jonas Lessa vê a receita aumentar até 15% a cada temporada. Morador de Capão da Canoa, ele estuda em Canoas, de onde volta todos os dias. Por quê?
- Qualidade de vida, né?
Marrom, mas próprio para banho
O chocolatão está livre da poluição. Levantamento recente da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) mostra que todas as praias do Litoral Norte - incluindo a Prainha na Lagoa do Peixoto, em Osório - estão próprias para banho.
Responsáveis pelo aspecto marrom da água do litoral gaúcho, o acúmulo de matéria orgânica e a presença de algas nada têm a ver com sujeira - mas, sim, com o deságue dos rios Mampituba e Tramandaí.
Segundo o biólogo Luiz Fernando Carvalho Perello do Departamento de Planejamento, Qualidade Ambiental e Geoprocessamento da Fepam, o esgoto que chega à praia é tratado, e o que eventualmente não recebe tratamento se dilui rapidamente. A geografia da costa, sem baías, favorece essa dispersão.
Questões climáticas e densidade de uso do solo também interferem. De uns anos para cá, com a construção de novos condomínios e o aumento da população fixa no litoral, o saneamento está perto da saturação, afirma a chefe do Departamento de Qualidade, Planejamento e Infraestrutura da Fepam, Ana Rosa Severo Bered.
Como não se permite lançar efluentes domésticos nas lagoas, um dos problemas que preocupa os gestores é encontrar novas áreas para o tratamento de esgotos.
O desafio motivou a criação de um grupo de trabalho formado por Fepam, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Corsan para projetar o saneamento básico dos próximos anos. O diagnóstico ajudará a discutir a situação em curto, médio e longo prazo.
- Queremos antecipar uma questão que, no futuro, pode se problematizar. Não temos mais área para construir outras estações de tratamento. Precisamos pensar em iniciativas conjuntas. Estamos falando, inclusive, em emissários submarinos.
Atualmente, os efluentes domésticos são tratados em solo e depois emitidos para os rios e o mar. A Fepam monitora a qualidade da água a cada seis meses.
Veja galeria com imagens do Litoral Norte do Estado: