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Com o filho Henrique recém-nascido nos braços, Cristina Bertoni, 36 anos, assistiu a uma propaganda na TV que mostrava uma mãe bem maquiada, com a casa arrumada, enquanto segurava um bebê tranquilo e limpinho. Olhou para si mesma e se deu conta de que estava suja, despenteada e, o pior, querendo estar em outro lugar enquanto o seu filho chorava sem parar. De repente bateu a maior culpa: "Será que sou uma boa mãe?".
Meses depois, ela se fez a mesma pergunta ao deixar Henrique na creche para retomar as atividades profissionais. Cristina sempre quis ter filhos, mas também desejava ser professora universitária de biologia. Ao chegar em casa à noite, após um dia cansativo - mas gratificante - de trabalho, ficava frustrada por não ter energia para brincar com Henrique.
- Eu me sentia conflitada o tempo todo - desabafa.
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Cristina não é a única mãe a ter sentimentos contraditórios com relação à maternidade, embora esse não seja um assunto falado abertamente. Diante de uma imagem idealizada de amor e competência maternos reproduzida em propagandas, filmes e capas de revistas, muitas mulheres se questionam por que não conseguem atingir esse ideal da supermãe, que está sempre feliz e em sintonia com o filho. O resultado vem na forma de culpa, muita culpa.
Para alívio das mães, não há nada de errado em ter esses sentimentos conflitantes. A psicanalista Julieta Jerusalinsky, especialista em clínica com bebês, atende muitas mães com sentimentos ambivalentes em relação a seus filhos.
São anseios normais presentes em todas as relações, mas considerados imperdoáveis quando se trata da dinâmica mãe e filho, devido ao mito do amor materno incondicional. Além disso, as frustrações se agravam à medida que as mulheres modernas são pressionadas para serem boas mãe, boas profissionais e boas esposas.
- O ideal social é uma promessa de completude, de que tudo é possível. Mas, na verdade, é uma expectativa irreal tentar dar conta de tudo sem abrir mão de algo. E quando as mães se veem diante de alguma falta ou falha, sentem a mais profunda angústia - explica.
Não é fácil encontrar completude, diz psicanalista
Não há uma receita para solucionar o conflito. Algumas mulheres abrem mão do trabalho, outras da maternidade. Um terceiro grupo inventa saídas possíveis, tentando dar conta das necessidades dos filhos sem abrir mão totalmente da carreira e de hábitos de lazer. O mais importante é acabar com o fantasma da supermãe e com a ideia imperativa de que é possível "fazer tudo", conforme a psicanalista.
- Não tem uma resposta única ou normativa. O ponto é que, por mais que se circule por esses diferentes modos de realização, não irá se encontrar completude - complementa.
Para Cristina, a solução foi reduzir a carga horária - e o salário - do trabalho de professora universitária de forma a poder se dedicar à maternidade com menos culpa.
- Não tenho família aqui, então tive de fazer a opção pela maternidade - diz.
Desde que teve seu segundo filho, Júlia, há cinco meses, ela também tenta se cobrar menos.
- A minha solução é fazer as coisas que eu posso, dentro dos meus limites. Se não tem janta, não tem janta, se roupa ficou para lavar amanhã, paciência - diz.
Situações são pouco debatidas
Luciana criou um blog sobre as ambiguidades maternas
Foto: Júlio Cordeiro
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Para a publicitária Luciana Cattony, 37 anos, foi natural retomar a rotina pré-maternidade quando o filho Henrique fez um ano. Ela voltou a trabalhar em uma agência de publicidade e tentou reaver a sua vida social, que estava estacionada desde a chegada do rebento. Por isso, colocou o garoto na creche da manhã à noite.
- Eu sempre trabalhei, estava acostumada a não dar satisfação, mas com o Henrique tinha acabado essa parte de liberdade - lembra.
A morte prematura de um bebê na família gerou uma nova reviravolta: uma culpa imensa por não passar mais tempo com o filho durante o dia.
- Eu me senti tão mal que, no dia seguinte, marchei para o escritório e pedi demissão - diz.
Hoje ela achou um equilíbrio: trabalha só no turno da tarde. E lembra dessa fase como um processo de autoconhecimento. Mas durante o período conflitante, Luciana se sentiu solitária. Percebeu que ninguém falava sobre essa situação na pracinha, no trabalho ou nos encontros com as amigas. Poucas mães assumiam os sentimentos ambíguos ou falavam da sensação de culpa materna.
Foi assim que ela teve a ideia de criar a comunidade online Real Maternidade, um espaço para as mães falarem abertamente sobre esses assuntos.
Com menos de um ano de existência, a página no Facebook do Real Maternidade já tem quase 130 mil seguidoras. Para ela, o segredo é abordar essas questões de uma forma "leve e descontraída". Hoje Luciana também mantém um blog, o realmaternidade.com.br, para retratar uma maternidade sem mitos e que vai contra uma idealização exagerada da figura materna.
- A ideia é criar um espaço para as mães dividirem experiências, aprenderem um pouquinho aqui e ali, aliviar um pouco a culpa e deixar de lado aquele sentimento de que só com a gente é assim - explica.
Ser ou não ser mãe?
Não há dúvida de que ser mãe não é fácil - e as crianças demandam, sim, muito tempo e atenção. Para as mulheres que não conseguem pensar em adaptar rotinas, há outra solução que está longe de ser simples, mas é necessária: abrir mão da maternidade. Segundo a autora do livro Bebês de Mamães Mais que Perfeitas (Ed. Centauro, 2008), a terapeuta reichiana Cláudia Rodrigues, o tema é um tabu, mas já está mais do que na hora de começar a falar abertamente sobre isso.
- Muitas vezes (os pais) embarcaram no conto da família nuclear sem ter noção do que um bebê precisa, do que uma criança precisa em termos de afeto - diz.
Na opinião de Cláudia, a sociedade pressiona para que se tenha filhos, mas os pais precisam se perguntar o que isso, de fato, significa. E se fazer perguntas não menos complicadas, como "por que queremos formar família?" ou "estamos dispostos a mudar hábitos e carreira com a chegada dos filhos?".
- Muita gente se concentra nessa questão apenas cercando-se de cuidados com a administração das contas, mas filhos exigem muito mais do que dinheiro, o dinheiro é o de menos - acredita.
Ao mesmo tempo, muitas mulheres sentem que precisam ter filhos, seguindo um mito de que só assim serão felizes e completas. Além disso, elas têm receio de serem malvistas pela família e amigos:
- As mulheres que optam por não serem mães são profundamente discriminadas, vistas como egoístas, como se não fossem capazes de amar - lamenta a terapeuta.
A não maternidade consciente começa, aos poucos, a ganhar espaço. Personalidades como a atriz Helen Mirren e a presidente da Alemanha Angela Merkel já assumem publicamente a decisão consciente de não serem mães. E grupos na internet, como o Gateway Women, oferecem apoio emocional para as mulheres planejarem um futuro sem filhos em uma sociedade que gira em torno de crianças.
A opção por não ter filhos começa a repercutir nas estatísticas: nos Estados Unidos, atualmente uma em cada cinco mulheres resolve não ter filhos. No Brasil, de acordo com o IBGE, a tendência parece ser a mesma. Em 2012, o percentual de casais sem filhos subiu de 14% para 19% em uma década.