Lulu se alfabetizou no quarto 445, com as paredes decoradas por desenhos enviados pelos colegas, durante as visitas da professora da Educação Infantil. Adora rasgar os cantinhos de folhas de papel e mandar bilhetes. "Pai obrigada por me apoiar nas horas defises e boas tu é o pai mais legal do mundo. Te amo mais do que o céu. Bjs Lulu", escreveu recentemente. Em março, pôde voltar às aulas regulares para o início do 1º ano. No portão do Colégio Anchieta, decidiu tirar o lenço. Ao entrar na sala, fez uma oferta que levou a turma, imediatamente, a formar uma fila diante da recém-chegada:
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Internações hospitalares, sessões de químio e radioterapia, transfusões, isolamento, remédios, exames, confinamento. Um caso tão grave e uma fragilidade tão extrema que se aproximaram da morte. Nas palavras da mãe, Denise Fincato, 42 anos, a leucemia que acometeu a caçula, Luísa, hoje com seis anos, arremessou a família num furacão.
Em Zero Hora, no intervalo de um ano, a advogada publicou artigos sobre os dois momentos mais marcantes do período: o diagnóstico, em agosto de 2013, e o quase sossego do estágio atual, com a doença sob controle. Lulu e as plaquetas e Lulu e o furacão emocionaram leitores, reforçaram a rede de amparo em torno do casal e das duas filhas e aguçaram uma curiosidade: quem é a pequenina sobrevivente que, na descrição da mãe, "vem crescendo linda, esperta e incrivelmente madura, tem um senso de justiça invejável e ama, ama, ama"?
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- Tive que tomar mais de cem injeções - revela a menina, já acostumada com a cifra, aguardando o susto dos interlocutores. - Tive preguiça de contar, o pai contou - acrescenta, sem qualquer traço de drama.
De lenço tigrado envolvendo a cabeça pelada, Luísa parece contente com a possibilidade de conceder uma entrevista, mas logo se cansa da conversa comprida - "eu sabia que ia demorar!" - e vai brincar com a irmã, Laura, 10 anos. Denise e o marido, o também advogado Fábio Proença, 41 anos, relembram o início da agonia, durante férias em Punta Cana, na República Dominicana. À beira do mar cristalino de água a 32ºC, Lulu batia queixo de frio devido à febre. Pálida, exibia manchas roxas nas pernas e nas costas, à primeira vista creditadas à sapequice. No retorno da viagem, acumularam-se num mesmo dia outros sintomas do câncer mais frequente na infância: fadiga, sangramento no nariz e micro-hemorragias na retina, detectadas pelo oftalmologista.
- Entramos na emergência pediátrica e só saímos do hospital 49 dias depois - lembra Fábio, que, naquela madrugada, calcula ter lido 200 páginas sobre o tema na internet, tentando digerir o diagnóstico.
Alfabetização no quarto 445
Enfermidade maligna dos glóbulos brancos (leucócitos), responsáveis pelas defesas do organismo, a leucemia linfocítica ou linfoblástica aguda altera também a produção de outros componentes do sangue. Lulu logo precisou de plaquetas, e a multidão de doadores que compareceu ao Moinhos de Vento - ônibus lotados de estudantes e militares - emocionou os pais. Em certo ponto da campanha, 70% das bolsas de sangue eram coletadas em nome da garota, muito mais do que o necessário.
- Ela acabou ajudando inúmeras pessoas que não fazemos nem ideia de quem sejam - celebra o pai.
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- Querem passar a mão na minha careca?
As sessões de quimioterapia para combater o que ela define como "bichinhos no sanguinho" continuam, e a previsão é de que o tratamento se encerre em novembro de 2015. Com um aspirador de pó superpotente importado dos Estados Unidos, a assepsia é rigorosa no apartamento, onde os visitantes calçam protetores nos pés. Luísa usa máscara ao circular por ambientes com aglomerações. Adora sushi, mas não pode ingerir nada cru. Todas as precauções têm o objetivo de evitar o contato com micro-organismos capazes de abalar a fraca imunidade.
Esse um ano em que Fábio e Denise estimam ter envelhecido 15 inspirou um livro. Lulu das Plaquetas - Mensagens e Imagens de um Ano de Luta reúne depoimentos de familiares e amigos, desenhos e outras lembranças do vendaval. Tem lançamento previsto para 4 de outubro, pela editora Sapiens, na Livraria Cultura. A renda será destinada ao Instituto do Câncer Infantil.
Escreve a mãe nas primeiras páginas: "Vejo dias de felicidade inesgotável. Dias de muitas brincadeiras, pé na lama, roupa suja, joelhos ralados, mergulhos, multidões, shows, teatros, cinemas, viagens de mochila (sozinha ou com a mana). Aprendeste a batalhar pelo essencial (a vida) e isto te preparou para batalhares pelo resto também! E sempre 'de boa na lagoa', como costumas me dizer. Como se soubesses os porquês de tudo o que te acontece. Tremo de felicidade ao te imaginar adulta! Que mulher serás! E que orgulho terei de ti!"