Pegar um copo d'água. Parece um ato simples, mas pare para pensar na quantidade de etapas envolvidas. Levantar-se, dirigir-se à cozinha, abrir o armário, pegar um copo, encontrar a torneira, abrir o registro, servir-se, fechar o registro, levar o copo à boca, engolir. São atividades rotineiras para a maior parte da população, mas uma em cada 68 pessoas, em maior ou menor grau, pode não aprender assim tão facilmente.
Para alguém que tem o cérebro desenvolvido em outro ritmo, a aprendizagem é dificultada. Cada passo tem de ser dado de uma vez, e nem sempre fica claro que os mesmos passos podem ser aplicados em outras situações. Tomar água em outra casa ou pegar um copo de suco na geladeira, por exemplo, apesar de serem atos análogos, podem ser compreendidos como atividades diferentes para quem tem um complexo transtorno neurológico.
A dificuldade em assimilar conceitos e habilidades em diferentes contextos é apenas uma das características que podem dificultar a aprendizagem das pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) – definição que engloba, além do autismo clássico, também a síndrome de Asperger e outros distúrbios de desenvolvimento. Elas costumam ter problemas em interagir com outros e se comunicar, apresentar comportamentos repetitivos e interesses restritos, além de poder desenvolver sensibilidades sensoriais, como aversão à luz forte ou a barulhos intensos.
De causas ainda não totalmente compreendidas pela ciência, apesar de ter sido descrito pela primeira vez há mais de 70 anos, o TEA não tem cura. Pode ser identificado ainda na primeira infância e vai acompanhar o paciente pelo resto da vida. O neuropediatra José Salomão Schwartzman explica, porém, que diagnóstico precoce e acompanhamento especializado podem levar a melhoras significativas:
– A inexistência de cura não significa que esses indivíduos não devam receber o melhor tratamento disponível. Mas é preciso deixar claro: o que se pretende é fazer com que o autista possa ter seu desempenho levado aos limites de suas potencialidades, não que se livre da condição.
O tratamento vai depender do comprometimento cerebral do paciente.
O autista – como todas as outras pessoas – é um ser único, e a condição pode se apresentar nos mais variados níveis: desde os leves – em que não há deficiência intelectual ou atraso significativo na linguagem, mas pode haver hipersensibilidade e problemas na interação social –, até casos mais severos, em que a deficiência intelectual é acentuada, há grandes dificuldades na comunicação, que comprometem a sociabilidade, e padrões repetitivos de comportamento.
– Os sintomas são múltiplos, tanto que não existem duas crianças com autismo que tenham exatamente as mesmas características – afirma o pediatra Ricardo Halpern.
O diagnóstico precoce e uma intervenção rápida e intensiva conseguem garantir mais qualidade de vida às pessoas com autismo. Para tanto, pode ser necessário contar com o trabalho de profissionais como fonoaudiólogo, psicólogo, psicopedagogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psiquiatra e neurologista, entre outros, principalmente nas pessoas com níveis moderado ou grave do transtorno, dependendo do quão comprometido está o desenvolvimento.
Complexo e mais corriqueiro do que se pensa, o transtorno do espectro autista é difícil de ser generalizado. Talvez o autista tenha sensibilidades à luz ou a sons, talvez não; pode ser que balance as mãos ou a cabeça quando nervoso, pode ser que nunca tenha apresentado esse comportamento; talvez evite interagir com outras pessoas, talvez seja apenas tímido. Sinais como esses podem ser óbvios ou passar quase despercebidos, dificultando o diagnóstico. Muitos adultos com sinais de autismo, estimam os médicos, sequer sabem que têm o transtorno.
Convivendo com autismo...
...na infância
A criança com autismo costuma ter dificuldades de indicar o que precisa e mesmo o que sente: há uma aparente ausência de afeto, até com pais e irmãos. Dependendo do nível de comprometimento cerebral, tais características podem acompanhar o autista até a vida adulta ou serem quase totalmente superadas antes da adolescência.
É fundamental que a família mantenha uma rotina: pessoas com o transtorno do espectro autista tendem a sofrer com a imprevisibilidade – a ansiedade exacerbada é um sintoma da condição. Por isso, orientar sobre cada passo ajuda a dar um sentido de organização ao cérebro.
– Quando recebemos alguma informação inesperada, conseguimos rapidamente voltar para nossa organização. No autismo, isso desestrutura o cérebro, que não consegue se adaptar rapidamente – explica o terapeuta ocupacional Régis Nepomuceno.
Essa desorganização, quando acontece, pode levar aos "ataques" frequentemente associados ao transtorno. Em uma ida ao shopping, por exemplo, a criança é exposta a um número tão grande de estímulos que isso pode causar uma espécie de colapso mental. E a saída para o que a ciência chama de "estressor ambiental" pode estar em um grito ou em uma série de gestos repetitivos – numa tentativa do autista de se reencontrar naquele ambiente.
Nesses casos, especialistas orientam que é preciso explicar a condição da criança aos curiosos e esperar até que ela se reorganize. Para Nepomuceno, é um ato importante também para conscientizar sobre o autismo.
– Sem valorizar mais o autismo do que a pessoa – pondera.
... na fase adulta
Há adultos que sabem que têm o transtorno e outros sequer desconfiam. Alguém que nunca tenha percebido dificuldades no aprendizado ou atribuído algum embaraço na interação social à condição talvez jamais desconfie de que tem autismo.
A necessidade dos adultos, como em tudo que se refere ao transtorno, vai depender do grau de comprometimento do cérebro: é possível ter desde total autonomia até completa dependência. Mas algumas características são frequentes: a apresentação de comportamentos repetitivos – que podem ser tão comuns quanto batucar na mesa –, a sensibilidade à luz ou a sons e uma dificuldade de olhar os outros nos olhos.
O principal, quando identificados sinais do transtorno, é buscar um diagnóstico o mais brevemente possível.
Para que a convivência seja a melhor possível, é importante entender as dificuldades do autista. Muitos apresentam predileção pelo isolamento, mesmo que estejam em um ambiente movimentado, e isso não quer dizer que não gostem das pessoas ao redor. E a própria pessoa ou seus familiares devem entender que ter dificuldades nas interações sociais não significa abrir mão da convivência: sair de casa, além de abrir os horizontes para o cérebro, pode funcionar como estímulo ao aprendizado.
– Se uma criança que começou a apresentar déficit na comunicação aos nove meses começa o tratamento com um ano, só temos que recuperar três meses de aprendizado. Com um adulto, fica muito mais difícil – define a pedagoga Adriana Kuperstein, que há 28 anos trabalha com casos de autismo.
Apoio familiar incondicional
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Os primeiros sinais de que Guilherme era autista surgiram pouco depois de ele completar um ano de vida. O garoto, mesmo naquela idade, não parecia estar se desenvolvendo da maneira esperada. Tampouco mantinha contato visual fixo ou parecia responder quando a mãe, a psicopedagoga Claudia Zirbes, ou o pai, o ortopedista Gustavo Hoffmeister, o chamavam. As suspeitas, porém, não eram suficientes para confirmar a condição. Até que, aos dois anos e 10 meses, ele recebeu o diagnóstico: tinha transtorno do espectro autista.
A confirmação não chegou de surpresa. Não que se adaptar à condição do menino, hoje com oito anos, tenha sido fácil. Cheia de planos para o filho, Claudia teve de ajustar suas expectativas e focar no desenvolvimento de uma série de habilidades aparentemente mais frugais. Guilherme tem um grau de autismo moderado. Apesar de parecerem simples, algumas ações são sinal de grande avanço para o menino: que ele consiga se comunicar com mais clareza, tomar banho e escovar os dentes sozinho, que possa passear.
– Esse início foi marcado por um pouco de tristeza, por ter de desconstruir tudo aquilo que a gente tinha projetado para ele. Mas logo superamos isso, e fazer de tudo para que ele possa se desenvolver da melhor maneira possível é hoje nosso principal objetivo – afirma a mãe.
Guilherme conta com alguns profissionais como fonoaudióloga, terapeuta ocupacional, psicopedagoga e neuropediatra – e, apesar de se comunicar mais por palavras soltas, precisando ser encorajado para conseguir formar frases maiores, tem demonstrado avanços significativos no seu desenvolvimento. Ele tem o principal: uma família engajada, que se preocupa com sua evolução e garante a continuação do tratamento em casa.
– Tem todo um plano terapêutico que seguimos, e diversos objetivos de desenvolvimento a longo prazo, mas o principal é o presente. Tentamos garantir que o agora dele seja o melhor possível – completa Gustavo.
As irmãs Isadora, 17 anos, e Giovanna, 14, também são parceiras. Elas divertem o caçula, estimulam – são como mentoras do irmão. Cada avanço é comemorado por elas como se fosse seu. Lembram que, quando ele ensaiou as primeiras palavras, com mais de quatro anos, foi "como uma final de Copa do Mundo".
– Quando ele não está, fica um silêncio chato, parece que não tem nada pra fazer – diz a irmã mais velha.
Preparação coletiva no mercado de trabalho
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Telefone tocando, gente cruzando pelo corredor, computador ligado, conversas, prazos, metas. O ambiente de trabalho costuma ser marcado por uma série de estímulos e cobranças que podem ter um preço alto para pessoas com autismo. E, não bastasse a pressão, ainda há a necessidade de interações sociais, o que tende a exigir grande esforço mental de quem tem o transtorno. O quão bom seria minimizar todo esse esforço e garantir uma jornada laboral mais acolhedora?
A empresa onde Márcia Machado trabalha pensou nisso ao contratá-la. Com um grau leve de autismo, detectado apenas recentemente, ela tem sensibilidade à luz e costuma se distrair quando colegas caminham por perto. Em empregos anteriores, quando atendia o público, cobrava de si mesma que disfarçasse hábitos talvez não tão socialmente aceitos.
– Eu saía exausta ao final do dia. Ficava preocupada sobre o que pensariam se eu não olhasse nos olhos, se gesticulasse demais. Aqui, pude criar meu próprio ambiente de trabalho. Posso ser eu mesma – diz Márcia, hoje desenvolvedora na SAP Labs Latin America, em São Leopoldo.
Sua mesa é agora mais afastada do corredor, ela pode colocar os óculos escuros quando há muita luz ao redor sem que seja vista com estranheza, os colegas sabem de sua condição e a entendem. As adaptações parecem simples, mas fazem toda a diferença para ela. E para a empresa também.
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Contratar funcionários com autismo tornou-se um programa em todas as unidades da companhia ao redor do mundo. E a inclusão não é o único benefício dessa iniciativa: os gestores de Márcia e seu colega Bruno Vigna, que também tem o transtorno em grau leve, elencam benefícios de ter na equipe pessoas com autismo.
– Eles têm uma organização, um olhar que foca no detalhe que é muito importante no que trabalhamos. E contribuem ainda com diferentes formas de pensar, sempre muito bem-vindas para que tenhamos um ambiente mais criativo – define Rodrigo Silva, gerente de desenvolvimento na empresa.
Parte fundamental do processo de contratação de Bruno e Márcia passou por preparar os colegas para sua chegada. Eles têm uma série de individualidades: Bruno, por exemplo, costuma levantar a voz sem perceber e perde a concentração quando alguém bate o pé ou balança a caneta sem parar – características que, o desenvolvedor destaca, não são exclusivas a ele.
Ambos afirmam que a falta de compreensão dos colegas em outras experiências de trabalho acabava tornando o ambiente hostil, fazendo-os se sentirem excluídos, piorando sua performance. Desta vez, isso mudou. Com o apoio que recebem, hoje conseguem explorar ao máximo as suas habilidades.
Direito a escola
Desde 2012, quem tem transtorno do espectro autista no Brasil é considerado pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais. A Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista institui, entre outras considerações, que o autista frequente a escola regularmente, em classes comuns, e, em caso de necessidade, tenha direito a acompanhamento especializado durante as aulas, sem cobrança de taxas extras. A escola que recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista – ou qualquer outro tipo de deficiência – pode ser multada.
Apoio
Em Porto Alegre, o Instituto Autismo e Vida acolhe e auxilia famílias de pessoas com o transtorno. Mais informações pelo telefone (51) 3414-0204.
Não há cura, medicamentos ou mesmo expectativas
Apesar de ser conhecido há décadas, o transtorno do espectro autista (TEA) ainda desafia a medicina. Pouco se sabe sobre como a condição se forma, por que acontece, como poderia – se é que poderia – ser evitada.
Desde que foi descoberto, muito se avançou em relação ao diagnóstico e à compreensão dos sintomas do transtorno e seu tratamento, mas suas origens e uma possível cura permanecem desconhecidas.
Sabe-se que há uma explicação genética para o transtorno, mas as pesquisas feitas até agora não conseguiram demonstrar o que é determinante na sua formação. Na pessoa com síndrome de Down, por exemplo, descobriu-se que as células recebem 47 cromossomos em vez de 46. No caso do espectro autista, a existência de genes a mais ou a menos no DNA pode ser a chave, mas isso varia de pessoa para pessoa e dificulta a busca por respostas.
Cientistas apontam, porém, que algumas condições podem gerar uma espécie de predisposição para o TEA. Quando um filho têm o transtorno, o risco de outro também ter pode ser de 2% a 18% maior – um percentual bastante impreciso, que ilustra o quanto a condição ainda é uma incógnita. O gêmeo não idêntico de uma criança com autismo também tem entre 0% e 31% de risco a mais de desenvolver o TEA. Prematuros, filhos de pais mais velhos ou que passaram por dificuldades respiratórias (entre outras) no nascimento também teriam mais probabilidade de desenvolver a condição.
A busca pela cura tem sido feita em fontes diversas. Há estudos com células-tronco e pesquisas que tentam criar uma vacina ou medicamento capaz de reverter a condição ou, ao menos, interromper alguns dos sintomas. Entretanto, nenhuma alternativa, por enquanto, demonstrou resultados promissores.