
Um monumento cinematográfico poderá ser visto por apenas três dias na Capital. Vencedor em 2014 do German Film Awards, mais importante prêmio do cinema alemão, nas categorias de melhor filme, direção, roteiro e fotografia, Heimat - A Outra Pátria será exibido no Guion 1 hoje e amanhã, às 19h, e sábado, às 17h. Sem previsão de lançamento no Brasil, a produção tem essas apresentações promovidas pelo Instituto Goethe, em celebração dos 190 anos da imigração alemã no país.
Heimat é um drama épico com quase quatro horas de duração, dirigido por Edgar Reitz, no qual o Brasil, o Rio Grande do Sul em particular, tem presença de destaque. A história se passa em um fictício vilarejo na região de Hunsrück, entre 1842 e 1845. Na esperança de um recomeço de vida longe da fome, da pobreza, das doenças e das disputas de poder que tensionavam a Alemanha, os camponeses se viam seduzidos pelos relatos da primeira leva de imigrantes chegados ao Brasil.
Em meio à reconstituição cenográfica e histórica primorosa, que referencia usos e costumes e contextualiza episódios determinantes no processo de imigração (veja abaixo), Reitz espelha este sonho com o Novo Mundo na figura do jovem Jakob Simon (Jan Schneider, que estará presente nas sessões do filme).
O rapaz dedica mais tempo aos livros do que ao trabalho pesado, o que o coloca em conflito com o pai ferreiro. Outro foco de atrito se dá com a volta para casa de seu irmão mais velho, dispensado do serviço militar prussiano, que, além ser mais apegado à família e á terra, desenhará um triângulo amoroso com Jakob e uma moça da aldeia vizinha.
A ação de agentes do governo brasileiro na região, oferecendo viagem, terras e outros benefícios aos interessados em povoar o Rio Grande do Sul, faz Jakob contar as horas para cruzar o Atlântico e encontrar o paraíso tropical que idealiza. Reitz imprime nos conflitos familiares e afetivos dos personagens, e nas reviravoltas que as circunstâncias impõem em suas vidas, uma potente dramaturgia, valorizada pelo ótimo elenco. A beleza da fotografia em preto e branco é pontuada por elementos de cor que imprimem um registro próximo do fabular.
O título original do longa é Die Andere Heimat - Chronik einer Sehnsucht (A Outra Pátria - Crônica de um Desejo). Reitz o apresentou fora de competição no Festival de Veneza de 2013, com ótima recepção de público e crítica.
Com Heimat, o diretor acrescenta um prólogo - idealizado para o cinema - a sua aclamada e portentosa trilogia exibida ao longo de 30 anos como minissérie de TV, na qual os protagonistas vivenciam os principais episódios da história da Alemanha. Começou com Heimat - Eine deutsche Chronik (1984), cobrindo em 11 episódios de 1919 a 1982, seguiu com Die zweite Heimat - Chronik einer Jugend (1993), contemplando em 13 episódios a efervescência política dos anos 1960 e 1970, e prosseguiu com Heimat 3 - Chronik einer Zeitenwende (2004), seis capítulos descrevendo as transformações decorrentes da queda do muro de Berlim e a realidade do país no começo do século 21. Outro projeto memorialístico do diretor é Heimat - Fragmentos: As Mulheres (2006), exibido em festivais no Brasil. Todos estes títulos foram lançados em DVD no Exterior.
Confira as exposições em cartaz na Capital sobre a imigração alemã
Leia comentário do professor de História René E. Gertz sobre o filme
"Heimat - A Outra Pátria" dá conta de um grande painel histórico
A convite de ZH, o professor de História na PUCRS René E. Gertz assistiu à sessão de Heimat a imprensa. Ele comenta alguns temas abordados no recorte cronológico destacado pelo filme, entre 1842 e 1845, que mostram o Rio Grande do Sul como uma alternativa ao cenário de guerras, fome e disputas de poder na Alemanha.
Guerras napoleônicas
O Hunrück é uma região na fronteira com a França e tinha sido afetado -- como toda a Alemanha - pelas guerras napoleônicas. Inclusive as futuras cores nacionais foram estabelecidas nas guerras contra os franceses, pois o exército de cada Estado alemão tinha um uniforme. Para isso, houve então uma redução às três cores (preto, vermelho, ouro) - lembrando que Napoleão foi definitivamente derrotado em 1815.
Conflitos entre protestantes x católicos
O conflito religioso não é uma questão aguda naquele momento. Vai ser depois, quando Bismarck unifica a Alemanha (em 1871) e , sob o argumento de evitar a influência "externa" católica, toma medidas contra instituições católicas, expulsando, por exemplo, os jesuítas, que então vêm em massa para o Rio Grande do Sul. No filme, a aldeia é luterana, o pai não gosta do genro católico, mas grandes guerras religiosas não existem nesse momento. O que existe é o controle religioso das igrejas sobre os fieis, independentemente de confissão.
Camponeses letrados
A Prússia foi um Estado modernizador, difundindo a educação primária. Moderniza-se de cima para baixo, ou seja, melhora sua mão de obra com educação, mas fecha o sistema político e mantém privilégios à elite. A gente costuma falar numa "modernização conservadora" ou "modernização pelo alto".
Assédio do governo brasileiro
As promessas de agentes brasileiros eram atrativos. Prometia-se terra, ajuda com implementos, sementes, animais, liberdade de todo tipo. As autoridades alemãs só mais tarde vão começar a ter restrições à emigração, nos anos 1850, quando vieram notícias de que, sobretudo em São Paulo, as promessas não eram cumpridas, e os imigrantes acabavam escravos (mesmo que formalmente livres) nas fazendas de café. Aí, começou a haver leis restritivas de emigração para o Brasil.
Imagem do paraíso tropical
As condições climáticas no Rio Grande do Sul eram conhecidas, inclusive serviram de atrativo (não era tão quente). Mas o exótico exercia um fascínio adicional nos imigrantes, além da tentativa de melhorar de vida.
Imigrantes nos séculos 19 e 20
Até 1850, os imigrantes alemães são, basicamente, camponeses expulsos pela Revolução Industrial. A partir de 1850, vem uma pequena leva de outra gente, são os "Brummer" ou a "geração de 1848" - em geral, gente politizada, que participou da revolução de 1848/1849, que pretendia unificar e democratizar a Alemanha, e que, com a derrota, foi embora por causa de perseguições, ou mesmo para tentar edificar uma "nova pátria" no Brasil. Há historiadores que dizem que a fundação de Santa Cruz do Sul, por exemplo, foi uma tentativa de construir na floresta da América Latina a utopia que não tinham conseguido construir na Alemanha. Esses imigrantes entram nas colônias como professores, intelectuais, muitos tornam-se empresários depois. Karl von Koseritz é a grande figura-símbolo desse grupo. Depois disso, vem gente mais urbana, e o leque de imigrantes se abre. Convém destacar que a maior onda de imigração alemã não aconteceu no século 19. Muita gente não sabe disso, mas a década de maior vinda de alemães foi de 1920 a 1930, em virtude das consequências da I Guerra. Quem foi mais importante, é difícil de dizer, mas, até mais ou menos 1900, as empresas industriais do RS tinham quase exclusivamente donos de sobrenome alemão.
Veja galeria de fotos do imigrantes alemães no Rio Grande do Sul