
Depois de escalar o Kilimanjaro, cruzar o Saara e viver muitas outras aventuras radicais, o jornalista, escritor e fotógrafo Airton Ortiz, que completa 60 anos em novembro, poderia encarar seus dias de patrono da 60ª Feira do Livro de Porto Alegre como um ameno passeio. Não está sendo assim. O evento começa na próxima sexta-feira, mas o novo patrono já está envolvido em polêmica: tem sido criticado por ter editado, nos anos 1980, o livro Brasil Sempre, que defendia o golpe de 1964.
Um dos grandes responsáveis pela popularização da literatura de viagens no país, Ortiz conquistou o mercado editorial brasileiro com mais de uma dezena de títulos sobre suas jornadas pelo mundo - o mais recente, sobre Paris. Nesta entrevista, ele fala sobre viagens, mercado editorial e sobre a controvérsia dos últimos dias.
Como editor da Tchê!, o senhor publicou o livro Brasil Sempre, do ex-agente do Doi-Codi Marco Pollo Giordani, em 1986. Por conta disso, o senhor tem recebido críticas em artigos na imprensa. Como o patrono da Feira do Livro está vendo essa polêmica?
Ainda não consegui entender o que há por trás disso, porque obviamente há algo. Ninguém inicia algo raivoso assim, desse modo, sem outra motivação. Será que é porque esse rapaz que escreveu (Alfredo Aquino, da editora Ardotempo, que publicou o artigo A Feira do Livro Assombrada no caderno PrOA do domingo passado) não aceita que o autor dele não foi patrono? É isso? Não sei, não dá para entender (a Ardotempo é a editora do escritor Aldyr Garcia Schlee, que também foi patronável este ano).
Brasil Sempre é um livro que apoia francamente o regime militar, que censurou a literatura e as artes. Pode ser por isso?
E por que só há um contrariado? As pessoas me ligam e perguntam: "O que esse cara tem, vocês brigaram alguma vez, tu deste nele?". Entendo o Juremir (Machado da Silva, articulista que criticou a escolha de Ortiz como patrono em artigo no jornal Correio do Povo do dia 24 de setembro). Ele é polêmico mesmo e está no papel dele como jornalista. Mas esse cara... Nunca fiz nada contra ele, não sabia nem que ele ou a editora dele existiam. Uma emissora de rádio me convidou para fazer sugestões de livros, algo como indicações do patrono, e o primeiro livro que indiquei foi o título mais recente do Aldyr (Garcia Schlee). Não tenho nada contra o Aldyr, acho ele um ótimo escritor. Hoje recebi um monte de ligações me perguntando o que eu fiz para esse cara (Alfredo Aquino), porque ele levou para o lado pessoal. Ninguém está entendendo isso.
Alfredo Aquino pode ter expressado a opinião de outras pessoas com relação ao assunto?
Ninguém foi mais perseguido do que eu na ditadura. Quando cheguei a Porto Alegre, participei da diretoria do Sindicato dos Bancários, em 1979, quando Olívio Dutra foi o presidente. Sofremos intervenção, não podíamos entrar em nossa sede. Um dia fui buscar meus documentos pessoais na minha sala e tinha um cara de metralhadora lá dentro que não me deixou entrar, eu insistia, para provocá-lo, e ele me dizia que me levaria preso. Toda a diretoria foi presa nessa greve, tivemos que fugir e nos esconder. Havia infiltrados no sindicato, bem como na Famecos, onde estudei Jornalismo. Além disso, 99% dos livros da Tchê! eram de esquerda. Editamos títulos de Índio Vargas, Luiz Pilla Vares e muitos outros autores esquerdistas. Muitos deles foram lançados depois do Brasil Sempre, o que demonstra que, na época, ninguém da esquerda ficou incomodado com essa edição.
Com todo esse histórico de esquerda, não é uma contradição que o senhor tenha aceitado publicar Brasil Sempre?
Pelo contrário. Na opinião que tinha na época, e que mantenho até hoje, era uma maneira de publicar uma denúncia que mostrava que a repressão militar existia realmente, que havia agentes que se assumiam como tal. O livro mostrava como eles agiam e pensavam, qual era sua ideologia. Não pense que aquilo que o autor escreveu no livro é ideia dele: é ideia de todo o grupo do qual fazia parte. Foi isso que motivou a publicação. Imagino que tenha sido a mesma motivação que o Ivan Pinheiro Machado (L&PM Editores) teve quando editou os diários do general Mourão (Memórias: A Verdade de um Revolucionário, de Olympio Mourão Filho). O Mourão foi o homem que deu o golpe militar. Isso significa que, por a L&PM ter publicado esse livro, o Ivan endossou o golpe? Não, seria um absurdo dizer isso.
Como a Câmara Rio-Grandense do Livro, que organiza a Feira do Livro de Porto Alegre, está vendo essa polêmica?
A Câmara está perplexa. Se há algo nesse Estado que é unânime, é essa Feira. A Feira é o maior patrimônio que esse Estado tem, é um exemplo para o Brasil inteiro. Faz 60 anos que um grupo abnegado de livreiros vem fazendo esse evento. A Feira não dá lucro, ninguém participa da Feira para ganhar dinheiro, tanto é que as pequenas livrarias não vêm, porque não têm condições de pagar para participar. O que é bom para o livreiro é que ele vende o estoque dele. Não entendo atacar a Feira. Aquino critica a Feira por estar promovendo o consumismo. Criticar o consumo de livro é piada. Além do mais, digamos que, por hipótese, eu seja o maior criminoso do mundo, não é a Câmara que me nomeou patrono. Fui eleito por toda uma comunidade, não é a decisão de uma cúpula.
O senhor teme algum tipo de incidente na Praça durante a Feira?
A Feira é livre e pública. Se alguém quiser se manifestar, não vejo problema algum, mas depois vai ter que assumir o que fizer. Minha linha de atitude é muito simples: todo mundo tem direito de se manifestar e, num segundo momento, se alguém se sentir prejudicado por essa manifestação, seja de que tipo for, deve procurar a reparação via judicial. Esse é o caminho da democracia, não é na base da intimidação ou do amedrontamento. Mas não temo nada, pelo contrário, o que chega até a mim, principalmente por esse artigo do último domingo, é que esse cara se expôs ao ridículo.
O senhor participa do mercado editorial desde 1985, primeiro como editor, depois como escritor. Como vê as mudanças do mercado do livro nas últimas décadas?
Começo explicando por que fechei a editora Tchê!. O governo Collor abriu a economia, então empresas estrangeiras começaram a entrar no mercado brasileiro. Para fazer frente às empresas estrangeiras, as brasileiras precisaram se unir ou foram compradas. Houve concentração muito grande da economia. No ramo livreiro-editorial, chegaram as grandes livrarias, e as pequenas foram saindo do mercado. Chegou um momento em que, para vender um livro aqui para Porto Alegre, eu precisava entregá-lo em São Paulo, porque o setor de compras das grandes redes é lá, além de pedirem grande descontos, que não consegui dar. Da mesma forma, as pequenas editoras foram se unindo com as grandes ou fecharam. Resolvi fechar. Além da centralização, esse movimento também inviabilizou mercados locais. As grande livrarias que estão em Porto Alegre são redes nacionais, acabam comprando só o que vale a pena como rede, ou seja, livros de interesse nacional. Podem existir autores que vendam melhor aqui, mas não a ponto de sustentar uma indústria local.
Como autor, de que modo consegue se posicionar nesse mercado?
Eu não vendo em Porto Alegre. O Rio Grande do Sul é meu quarto mercado, vem depois da região metropolitana de São Paulo, Rio e interior paulista. Além disso, criei um nicho. Levei 15 anos, mas hoje tenho leitores no Brasil inteiro. A primeira edição dos meus livros já sai vendida. Isso ocorre porque criei um filão e estou há tempos nele. Além disso, o brasileiro cada vez viaja mais, então meu mercado em potencial está em crescimento. Mas, apesar de o brasileiro viajar cada vez mais, falta a segunda etapa: saber viajar. O brasileiro ainda viaja mais para impressionar o vizinho ou o colega do que para usufruir. Mas isso faz parte desse um aprendizado.
O que é saber viajar?
Não há hotel cinco estrelas algum mais confortável que nossa casa. Não há nenhum bar no mundo que tenha a cerveja no ponto que temos em nossa casa. A gente viaja para ver aquilo que só tem em outro lugar. Se é para ver o que há aqui, fico aqui. E o brasileiro ainda viaja para ver o que tem aqui, para comer o que comeria aqui, para comprar o que compraria aqui, beber o que beberia aqui, fumar o que fumaria aqui... Também viajamos para nos surpreender, para entrar em contato com o diferente. Quando isso ocorre, vamos vencendo nosso preconceitos, percebendo que somos apenas um pedaço pequeno desse mundo imenso que há aí. Mas o viajante menos experiente quer ir mesmo é para Paris, Nova York e Miami para depois poder contar para os amigos.
Também viajamos para poder voltar para casa, observar nosso lar de outra forma. Com toda sua trajetória de viagens, como você vê a estrutura do turismo no Brasil?
O turismo é a maior indústria do mundo, responsável por 10% do PIB mundial. Além disso, é a indústria que mais cresce no mundo, e o ecoturismo é o setor que mais se destaca. Nesse sentido, o Brasil tem tudo para ser um grande ponto de atrativos turísticos. Não precisa ir longe: olha nosso bioma pampa, é uma coisa fantástica. Infelizmente, não estamos explorando nossas capacidades. Temos muitos pontos turísticos, mas ainda não temos produtos turísticos. A Flórida é o maior alagadiço do mundo ou, em bom português, o maior banhado do mundo. Hoje, é a região que mais recebe turistas no planeta. Os caras transformaram um banhado em um centro de referência.
E por que isso não ocorre por aqui?
É que o turismo dá retorno a longo prazo, mas a mentalidade do empresariado brasileiro ainda é muito de curto prazo. Quando se abre um hotel, leva cerca de cinco anos para cadastrá-lo em todos os guias de turismo. Se o hotel está em um guia da Lonely Planet, não precisa fazer mais nada, mas até isso ocorrer, é preciso ter cinco anos de funcionamento, receber a visita de um repórter do guia e cumprir todas as exigências. É preciso estar disposto a investir a longo prazo.
Como viajante experiente, que destinos o senhor indica para quem quer viajar?
O que mais admiro no mundo é a diversidade. Por isso, não há como dizer que um destino é melhor do que outro. Mas tenho uma admiração especial por três países. Do ponto de vista cultural, destaco a Índia. A cultura popular é, em grande medida, reflexo da concepção religiosa do povo. A Índia, por ser politeísta e ter uma tradição religiosa muito fragmentada, gerou uma cultura popular extremamente diversificada. Já em beleza selvagem, o lugar mais interessante do mundo é a Tanzânia. Um terço da Tanzânia é parque nacional. Às vezes é preciso parar para que os leões atravessem a estrada quando você está dirigindo no interior. E quanto à beleza natural, chamo a atenção para o Nepal, um país pequeno, que tem 200 quilômetros entre uma fronteira e outra. Na fronteira sul, está o Ganges, no nível do mar; e na fronteira norte, a cordilheira do Himalaia. Ou seja, em uma caminhada de 200 quilômetros, que se pode fazer em uma semana, é possível sair do nível do mar e chegar à montanha mais alta do mundo. Encontra-se ali concentrada toda a variação topográfica do mundo e, na medida em que a altitude muda, mudam clima, fauna e flora.
Seu primeiro livro, Aventura no Topo da África, era sobre sua escalada ao cume do Kilimanjaro. O senhor diz que foi o primeiro gaúcho a subir o pico. Como se deu isso?
Já estava decidido a escrever uma grande reportagem e publicar em livro, só faltava encontrar o tema. A África me atraía por conta da vida selvagem, e o Kilimanjaro, por causa do livro As Neves do Kilimanjaro, do Hemingway. Tinha a experiência de fazer travessia em cânions, que é algo bem radical, mas ao nível do mar. Peguei a mochila e fui. Ao chegar em Joanesburgo, fui assaltado, passei 10 dias no hotel, sem ter o que comer, tentando conseguir um novo cartão de crédito. De Joanesburgo até a Tanzânia, ocorreu de tudo, e eu fui anotando. Ao chegar à cidadezinha na base da montanha, encontrei um alemão que havia ido no ano anterior e não havia conseguido chegar ao topo. Nós nos unimos, montamos uma expedição, contratamos um staff e fomos montanha acima. Fui com uma japona do Grêmio e de calça jeans _ o que me salvou foi minha bota, que era perfeita para montanhismo. Foi uma semana de escalada, 6 mil metros de altitude, até chegar ao cume. Até hoje não sei o motivo, mas não sofri o efeito da altitude. Tenho uma capacidade respiratória fantástica, que nem os médicos entendem, acho que é porque nunca fumei. O ar rarefeito não me atinge. Sobre o fato de ser o primeiro gaúcho, pesquisei em todas as associações de montanhismo, perguntei a muita gente da área, lancei o livro em 1999 e até hoje ninguém me contestou a respeito disso.
O senhor também participa de muitas feiras literárias, circuito crescente no Brasil. Em que medida são importantes para os escritores?
Uma vez fui entrevistar o Teixeirinha. Foi difícil marcar essa entrevista, pois ele sempre estava fazendo show em algum circo no Interior. Quando o encontrei, perguntei: "Teixeirinha, tu és um dos caras que mais vendem disco no Brasil, tu lanças um disco e precisas mesmo passar três meses tocando em circo do Interior?". Aí ele me respondeu: "É por isso que eu vendo tanto disco". Nunca esqueci. No cinema é a mesma coisa, Hollywood lança um filme no Brasil e vem o Tom Cruise ao Rio para promover. Quando eu era editor, dizia aos meus autores que eles precisariam ajudar se queriam ver seus livros circulando. O Rio Grande do Sul tem um mercado muito bom para isso, melhor do que em outros Estados. Eu faço uma média de 50 palestras por ano em feiras, 40 delas são no Rio Grande do Sul.
Além de divulgar seus livros, o escritor também é remunerado por esses encontros.
Há autores nossos que vivem exclusivamente disso. O poeta Mario Pirata, por exemplo, já me disse que, se aguentasse, faria uma por dia, e ele é ótimo, faz palestras maravilhosas. A Cristina Dias é outra que, se quisesse, faria uma feira por dia. É um mercado que vem se ampliando, cada vez recebo mais convites.
Isso não pode ajudar a baixar a qualidade dos títulos no mercado, uma vez que as editoras podem privilegiar autores que saibam mais lidar com o público do que escrever?
Quem determina a qualidade de qualquer obra de arte é o tempo. Se alguém lança um livro hoje, mesmo não indo a lugar algum, se for bom, será lembrado daqui a 30 anos. Da mesma forma, o autor mais "espetáculo" de hoje, que vende muito e circula, não será lembrado se não tiver qualidade. O escritor que marcará a história não é aquele que consegue fazer 50 feiras num dia, e sim aquele que sabe criar uma nova linguagem, a linguagem do seu tempo.
Por que, então, eventos como a Feira do Livro são importantes?
Meu trabalho como escritor acaba quando eu mando o original para a editora. Aí entra em campo o cidadão político. Me sinto na obrigação de levar para todos, e principalmente para os jovens, a importância da leitura. Não acrescenta nada na minha literatura fazer palestra no Interior, na Capital ou até fora do país, mas como cidadão, me sinto na obrigação de alertar as pessoas sobre a importância do livro e da leitura. A Feira do Livro de Porto Alegre foi criada justamente para isso. Imagina o tamanho da transgressão desses caras, que colocaram livros no meio da Praça da Alfândega em 1955. Há 20 anos, havia gente querendo me expulsar do sistema porque comecei a vender livros em supermercado. Ouvi de editores e livreiros que eu estava profanando a leitura. Os livreiros de 1955 não colocaram em supermercado, e sim direto na rua, em barraquinhas, debaixo de chuva! É por isso que essa feira se mantém e eu a considero sagrada.
E qual será sua bandeira na Praça?
Minha bandeira é a bandeira da Feira. Ser patrono não acrescenta nada a minha literatura, e sim a minha cidadania, pois amplia espaços que já venho usando para levar minha mensagem de que ler não é um dever, e sim um direito. E o maior de todos. Ler é o ato mais transgressor que existe, pois transforma inconformados em revolucionários. A leitura ajuda a agir conscientemente. Sou produto dessa bandeira. Se hoje tenho uma vida mais confortável foi por causa dos livros que li.